Literatura
Contexto educacional e linguístico
Devido a peculiaridades de sua formação como colônia, no Brasil a cultura literária custou a se desenvolver. Portugal não fazia nenhuma questão de educar os territórios colonizados - na verdade, por vários meios se esforçou para não educá-los, pois o grande interesse era a exploração de seus recursos e temia-se que uma colônia instruída pudesse rebelar-se contra o poder central e se tornar independente. Bibliotecas e escolas públicas não havia, e o que se aprendia - quando se aprendia - era uma instrução elementar sob a tutela da Igreja, especialmente dos jesuítas, fortemente direcionada para a catequese, e ali se encerrava a educação, sem perspectivas nenhumas de aprofundamento ou de aprimoramento do gosto literário a não ser que os pupilos acabassem por ingressar nas fileiras da Igreja, que então lhes daria melhor preparo. Além disso, grande parte da população era analfabeta e a transmissão de cultura era baseada quase toda na oralidade, a imprensa era proibida, manuscritos eram raros pois o papel era custoso, e só circulavam livros que haviam passado pela censura do governo, principalmente vidas de santos, catecismos, uns poucos romances inocentes de cavalaria, lunários e almanaques, compêndios de latim, lógica e legislação, de modo que além de os leitores serem poucos, quase não havia o que ler. Assim, a escassa literatura produzida durante o Barroco nasceu principalmente entre os padres, alguns deles de elevada ilustração, ou no seio de alguma família nobre ou abastada, entre os oficiais do governo, que podiam se dar ao luxo de estudar na metrópole, e era consumida neste mesmo círculo reduzido. O que pôde florescer nesse contexto paupérrimo seguiu em linhas gerais o Barroco literário europeu, caracterizando-se numa ênfase na retórica exuberante, no gosto pelas figuras de linguagem, no cultivo dos contrastes e no apelo emocional.[112][113]Acrescente-se a isso o fato de que até meados do século XVIII, quando o Marquês de Pombal introduziu grandes reformas na educação e buscou homogeneizar o panorama linguístico nacional, o que menos se falava no Brasil era o português. No contexto de um território conquistado cujos habitantes originais se expressavam em uma multidão de outros idiomas, os primeiros colonizadores europeus tiveram de conhecê-los, e acabaram por utilizá-los em larga escala em público e mesmo em ambiente doméstico, onde sempre circulavam índios escravos e mestiços, muitas vezes criando falas híbridas, como a língua geral paulista, que predominou no sul, e o nheengatu, que foi a língua franca da Amazônia por muito tempo. Essa miscigenação também se verificou no terreno pastoral, dando frutos literários em obras originais ou traduções feitas pelos missionários para trabalho com os índios, incluindo sermões, poemas e autos sacros, além de obras técnicas como catecismos, dicionários e gramáticas.[114][115][116][117][118][119] (Vide nota: [120]) Durante a União Ibérica, e sob influência das colônias hispânicas vizinhas, de onde vieram muitos em busca de melhores oportunidades, o espanhol também teve significativa circulação no sul do Brasil e São Paulo, mas ao contrário das línguas indígenas, não enraizou, extinguindo-se rapidamente. Em alguns pontos do litoral, durante um breve período, também se ouviram o holandês e o francês. As falas dos escravos africanos, por sua vez, é de registrar, foram severamente reprimidas, mas puderam sobreviver em pequena escala de forma dissimulada, quando sozinhos e em festas e ritos africanos praticados escondidos dos brancos. Enfim, diga-se que a linguagem da erudição naquela época era o latim, a língua oficial da Igreja, do Direito e da Ciência, e que monopolizava ainda todo o sistema educativo. Pouco espaço havia, pois, para o português ser cultivado com mais intensidade, ficando restrito quase exclusivamente ao âmbito oficial, e além de raros escritores pioneiros, alguns dos quais serão em breve mencionados, somente no século XVIII é que a literatura brasileira em português vai começar a adquirir uma feição mais rica e mais nitidamente nativa, acompanhando o crescimento das cidades litorâneas, o aparecimento das primeiras academias literárias e o surgimento do ciclo do ouro em Minas Gerais, mas ao mesmo tempo em que começava uma transição para o Arcadismo e seus valores classicistas.[13][114][116][121]
Poesia
No campo da poesia, destaca-se o precursor Bento Teixeira com seu épico Prosopopeia, inspirado na tradição de Camões, seguido de Manuel Botelho de Oliveira, autor de Música do Parnaso, o primeiro livro impresso de autor nascido no Brasil, uma coletânea de poemas em português e espanhol em rigorosa orientação cultista e conceptista, afim da poesia de Góngora, e mais tarde o frei Manuel de Santa Maria, também da escola camoniana. Mas o maior poeta do barroco brasileiro é Gregório de Matos, de grande veia satírica, e igualmente penetrante na religião, na filosofia e no amor, muitas vezes de crua carga erótica. Também fez uso de uma linguagem culta e cheia de figuras de linguagem. Foi apelidado de O Boca do Inferno por suas críticas mordazes aos costumes da época. Na sua lírica religiosa os problemas do pecado e da culpa são importantes, como é o conflito da paixão com a dimensão espiritual do amor.[122] Veja-se o exemplo do soneto A Jesus Cristo Nosso Senhor:-
- Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
- da vossa alta clemência me despido;
- porque, quanto mais tenho delinqüido,
- vos tenho a perdoar mais empenhado.
-
- Se basta a vos irar tanto pecado,
- a abrandar-vos sobeja um só gemido:
- que a mesma culpa, que vos há ofendido
- vos tem para o perdão lisonjeado.
-
- Se uma ovelha perdida, e já cobrada
- glória tal e prazer tão repentino
- vos deu, como afirmais na sacra história,
-
- eu sou Senhor, a ovelha desgarrada,
- cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
- perder na vossa ovelha, a vossa glória.
Prosa
Na prosa o grande expoente é o Padre António Vieira, com os seus sermões, dos quais é notável o Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, onde defendia os nativos da escravidão, comparando-os aos hebreus escravizados no Egito. No mesmo tom é o Sermão 14 do Rosário, condenando a escravidão dos africanos, comparado-a ao calvário de Cristo. Outras peças importantes de sua oratória são o Sermão de Santo António aos Peixes, o Sermão do Mandato, mas talvez a mais célebre seja o Sermão da sexagésima, de 1655. Nele não apenas defende os índios, mas também e, principalmente, ataca seus algozes, os dominicanos, por meio de hábil encadeamento de imagens evocativas. Sua escrita era animada pelo anseio de estabelecer um império português e católico regido pelo zelo cívico e a justiça, mas sua voz foi interpretada como uma ameaça à ordem estabelecida, o que lhe trouxe problemas políticos e atraiu sobre si a suspeita de heresia.[123] Seu estilo pode ser sentido neste fragmento:-
- "O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum." [124]
-
- "A Terra do Brasil, que está na América, huma das quatro partes do Mundo, não se descobrio de proposito, e de principal intento; mas acaso indo Pedro Alvares Cabral, por mandado de El Rey Dom Manoel no (ano) de mil e quinhentos para a India por Capitão Mor de doze Naus, afastando-se da costa de Guiné, que já era descoberta ao Oriente, achou estoutra ao Ocidente, da qual não havia noticia alguma, foi a costeando alguns dias com tromenta the chegar a hum porto seguro, do qual a terra visinha ficou com o mesmo nome.
-
- "Ali desembarcou o dito Capitão com seus soldados armados, pera peleijarem; porque mandou primeiro hum batel com alguns a descobrir campo, e derão novas de muitos Gentios, que virão; porem não foram necessarias armas, porque só de verem homens vestidos, e calçados, e brancos, e com barba - do que tudo elles caressem - os tiverão por divinos, e mais que homens, e assim chamando-lhes Carahibas, que quer dizer na sua lingoa cousa divina, se chegaram pacificamente aos nossos." [126]
Artes performáticas
Música
-
- (...)
- "E bem que quis a mísera fortuna,
- que vos fosse molesta e que importuna
- a hospedagem, Senhor, desta Bahia.
-
- "Sabem os céus e testemunha sejam,
- que dela os naturais só vos desejam
- faustos anos de vida e saúde,
- de próspera alegria, pela afável virtude
- de vossa generosa urbanidade,
- com que a todos honrais, desta cidade!
-
- (...)
-
- "Oh! Quem me dera a voz, me dera a lira
- de Anfião e de Orfeu, que arrebatava os montes
- e fundava cidades, pois com elas erigira
- um templo que servisse por memória
- e eterno monumento à vossa glória!
-
- (...)
-
- "Oh! Se também tivera o canto grave
- da filomela doce e cisne suave,
- vosso louvor, sem pausa, cantaria,
- com cláusula melhor, mais harmonia."[131]
- Manoel Dias de Oliveira: Surrexit Dominus Vere - Moteto da Procissão da Ressurreição (versão instrumental midi)
Teatro e festividades
As primeiras manifestações teatrais importantes no Brasil ocorrem na transição do maneirismo para o barroco, e foram realizadas em âmbito religioso, como parte da obra missionária de catequização do gentio. Assim são as peças de José de Anchieta, o maior e praticamente único dramaturgo do século XVI no Brasil, e sua produção se insere na concepção jesuíta de catequese cênica, sistematizada pelo padre Franciscus Lang em sua Dissertatio de actione scenica. Para formular seus preceitos Lang se baseou na tradição teatral italiana, nos antigos autos de mistérios medievais, e nas prescrições dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola, que previa a composição de lugar para melhor eficiência da meditação espiritual. No caso específico de Anchieta, o teatro de Gil Vicente foi outra referência importante.[134]Os enredos eram em geral retirados da Bíblia e da hagiografia católica, e a história da Paixão de Cristo ao longo da Via Sacra era dos mais importantes. As peças de Anchieta já evidenciam uma das características do teatro religioso do Barroco que permaneceria ao longo dos séculos seguintes, o sincretismo, com personagens retirados de vários períodos históricos e misturados a figuras lendárias. No Auto de São Lourenço, por exemplo, aparecem juntos os imperadores romanos Décio e Valeriano, anjos, os santos Sebastião e Lourenço, uma velha, meninos e demônios indígenas, e nesta mistura fica desde logo claro o propósito de "relativizar o tempo e o espaço em função do referencial divino, que é eterno e absoluto. Diante de Deus todas as coisas são concomitantes e, apesar da existência de uma história da salvação, os verdadeiros valores não são históricos ou lineares". No século XVII a forma do teatro sacro se desenvolve, se enriquecem os cenários e acessórios cênicos, e o público-alvo já não é primariamente o índio, mas toda a população.[134] No início não havia casas de teatro, e o local para tais representações era usualmente ao ar livre, nas praças diante das igrejas, ou ao longo das procissões, com o auxílio de cenários móveis instalados em cima de carros alegóricos que acompanhavam o percurso. A encenação contava com a viva participação popular, num movimento integrado entre atores e público. Muitas vezes se fazia uso de marionetes ou imagens sacras de um tipo especial, as estátuas de roca, vestidas como pessoas e articuladas de modo a poderem se adaptar à ação que se desenrolava, onde desempenhavam um papel evocativo fundamental.[135] Era nessas ocasiões, como expressou Sevcenko, em que o barroco revelava toda a sua força aglutinadora, sua energia extravasante e o poder de seu encantamento:
-
- "Então toda a cidade se move. As imagens desfilam solenes, refletindo as cores de suas tintas, vernizes, pedrarias e tecidos luxuosos, entre massas de velas e rolos da névoa perfumada exalada pelos turíbulos. A multidão adquire forma, organizada na hierarquia de suas funções, lustre e condição social. À frente, os representantes do Rei e da Igreja com suas insígnias e trajes de gala, seguidos dos militares em armaduras, as irmandades e confrarias com seus ícones e estandartes, e a escravaria agregada sob a efígie da Santa Misericórdia. Todos na mesma cadência, marcada pelos coros polifônicos e pelos clamores da fé, gritos, vivas, lágrimas e confissões espontâneas de pecados e vícios inimagináveis.....
-
- "À noite se davam as encenações teatrais, recitações, cantos, danças e mascaradas. As coreografias formais dos minuetos e contradanças nos salões extravasavam para as mouriscas e lundus nas varandas e dali para os congos, batuques e cucumbis nos quintais e terreiros. As danças noturnas se encarregavam assim de dissolver as rígidas segregações hierárquicas longamente ritualizadas durante o dia, reembaralhando as cartas ao acaso dos destinos individuais. Na vertigem dos rodopios e requebros, cada um incorpora o eixo em torno do qual gira o mundo, se lançando ao imprevisto das contingências guiado apenas pela verdade profunda da fantasia".[3]
- Bloco de maracatu em Olinda
- Procissão da Semana Santa em Pirenópolis, onde se leva uma imagem de roca
Recepção crítica
As especificidades da cultura barroca brasileira, definindo modelos não só nas artes mas em toda a vida social, foram reconhecidas primeiramente através da atividade de algumas das primeiras academias nacionais, fundadas na Bahia no século XVIII, como a dos Esquecidos e a dos Renascidos, que articularam um discurso transfigurador da realidade local, apresentando o país como "o desdobramento de um prodígio de glórias nos três reinos da natureza, com a consagração do homem que catequizara os indígenas, expulsara os hereges e recebera a recompensa do açúcar, do ouro e outras riquezas", como descreveu Antônio Cândido. Contudo, a partir de fins do século XVIII, com a introdução de ideias iluministas, essa tradição começou a perder força,[13] sendo substituída pela estética neoclássica. Chegando a corte portuguesa ao Rio de Janeiro, logo ela se tornou o "estilo oficial" do reino, uma mudança reforçada pela presença da Missão Artística Francesa. Desde então outras escolas artísticas se sucederam, fazendo com que a arte do passado fosse gradualmente esquecida e que muitas igrejas e outros monumentos barrocos fossem destruídos ou reformados de acordo com as novas modas vigentes.[14][137] Outro fator para o descrédito do Barroco foi sua associação com a longa dominação portuguesa, numa fase em que, proclamada a independência, o novo império buscava afirmar-se como nação autônoma e progressista.[138] Apesar de alguns viajantes estrangeiros do século XIX como Auguste de Saint-Hilaire e Richard Burton terem admirado as obras de Aleijadinho, ao longo de todo este século a opinião geral sobre o estilo era de desprezo.[139] Isso não impediu que muitos artistas populares, alguns deles com obra de alta qualidade, continuassem praticando no Barroco até hoje, especialmente em regiões provincianas, embora alguns autores prefiram delimitar o início do século XX como o limite do Barroco histórico no Brasil.[7][28][27] Uma voz de exceção entre os círculos ilustrados oitocentistas foi o elogio que fez Araújo Porto-alegre aos artistas coloniais da escola fluminense, considerando-os dignos de um lugar honroso na história da arte brasileira, mas é típica a manifestação de Gonzaga Duque, um dos críticos mais influentes do fim do século XIX:-
- "A igreja dos jesuítas é uma flagrante prova do mau gosto e da falta de inteligência que presidiam a formação de suas obras. Os mosteiros e conventos foram edificados durante o domínio do estilo Barroco, essa brutalidade inventada pelos fundadores da Inquisição. Nem palácios, nem templos suntuosos possuía a colônia. Tudo era acanhadamente dessa natureza".[138]
-
- "Há que se considerar que a grande maioria dos trabalhos relativos ao assunto se prende ao 'barroco mineiro', o que gera lacunas importantes no estudo do surgimento e desenvolvimento do estilo em outras regiões do país, levando a uma visão parcial e por demais restrita sobre um estilo, por si só imerso em pluralidade e contradições".[6]
-
- ".... fundiu os modelos da cultura europeia aos modelos africanos, indígenas e orientais, dando origem à figuração por vezes bastante original de valores locais,.... a mínima reconstituição histórica das práticas de representação desse tempo evidencia a fortíssima censura, o anti-semitismo, os estereótipos da limpeza de sangue, a desqualificação e a desonra do trabalho manual, a intolerância religiosa, a perseguição das ideias, etc. Evidencia também que.... a sociedade colonial vivia a História como uma figura providencialista de Deus, que participava nela como fundamento teológico-político da união da Igreja e Estado e como regulação jurídica da escravidão".[36]
-
- "O Barroco não foi. Ele ainda é, continua presente em quase todas as manifestações da cultura brasileira, da arquitetura à pintura, da comida à moda, passando pelo futebol e pelo corpo feminino.... Barroca é a técnica de composição que Villa-Lobos usou para criar suas nove Bachianas. Barroco é o cinema de Glauber Rocha, é nossa exuberante natureza, é o futebol de Pelé e de todos os que, driblando a racionalidade burra dos técnicos, preferem a curva misteriosa de um chute ou o esplendor de uma finta. Afinal, o Barroco é o estilo em que, ao contrário do renascentista, as regras e a premeditação importam menos que a improvisação. Quer coisa mais barroca que o Guga?"[155]
Conservação
A despeito do crescente prestígio que vem conquistando desde o início do século XX, o Barroco brasileiro ainda precisa de maior valorização e proteção. Seu acervo já sofreu graves perdas, principalmente devidas à ideia, prevalente desde o século XIX, de que o Brasil devia se modernizar; logo, o antigo devia ceder ao novo, e assim caíram antigas catedrais e ricas igrejas, conventos, solares e casarios, para darem lugar a avenidas e edifícios modernos; fachadas e decorações internas originais foram desfiguradas ou refeitas para se alinharem a modas mais atualizadas, pinturas e estatuária foram reformadas ou destruídas.[12][137][157] Isso sempre pela falta de conscientização por parte dos seus responsáveis, instâncias oficiais, eclesiásticas, dos próprios artistas das novas gerações e mesmo do povo, a respeito do valor de seu patrimônio colonial. Contudo, lembre-se que, na perspectiva histórica, até passada a metade do século XX esse valor ainda não fora consagrado em larga escala, e muitos, por muito tempo, viram as construções e obras barrocas de fato como feias, pesadas e definitivamente de mau gosto, num contexto que já foi explicitado antes.[12][138][139][153][157] Quando os intelectuais e a oficialidade, em especial através do Iphan, se voltaram para o Barroco nos anos 30, iniciou-se um movimento de maior amplitude para a preservação e conscientização, que entretanto ainda não conseguiu todos os seus objetivos e até hoje está evoluindo em resultados, conceitos e práticas.[12][153][157] Naquele mesmo momento histórico, que já foi chamado de "a fase heróica do Iphan",[158] se iniciou um programa de restauração de vários edifícios barrocos, alguns deles extensamente adulterados por reformas posteriores, devolvendo-lhes as feições primitivas, e salvando outros do processo de abandono e degradação.[157] De qualquer forma, desde o século XIX desapareceram muitos exemplares hoje considerados de grande importância, como as igrejas de São Joaquim e São Pedro dos Clérigos no Rio;[159] a antiga Sé, a igreja do Carmo, a de Nossa Senhora dos Remédios, a de São Pedro dos Clérigos[160] e a igreja e mosteiro de São Bento em São Paulo,[161] a igreja de Nossa Senhora da Barroquinha, em Salvador[162] a antiga Catedral de Cuiabá,[163] a igreja do Corpo Santo, em Recife,[164] e a antiga Matriz e a igreja do Rosário em Porto Alegre.[165] A imprensa noticia ainda nos dias de hoje casos de destruição provocada ou degradação passiva de exemplares de arquitetura, estatuária, pintura ou talha.[60][137][166][167] Também há grande preocupação dos órgãos oficiais a respeito do furto e tráfico ilícito de bens culturais. No Brasil esses crimes incidem com mais frequência exatamente sobre a decoração de igrejas barrocas, e inúmeras já foram as que tiveram estatuária e prataria subtraídas por malfeitores.[168] Como exemplo cite-se o caso de Minas Gerais, que em 2008 teve cem peças roubadas em diferentes locais, a maior parte exemplares de arte barroca. O Ministério Público mineiro afirmou que há uma grande quadrilha em ação, com conexões internacionais. Segundo o MP, 635 peças desapareceram das igrejas estaduais nas últimas décadas. A estimativa extra-oficial, no entanto, é que esse número seja dez vezes maior. Calcula-se que o comércio clandestino de bens culturais seja a terceira atividade mais lucrativa do mundo, atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. Além disso, a segurança das igrejas, onde a maior parte do acervo é conservada, muitas vezes é precária, facilitando os saques.[169] Instâncias federais como o Iphan procuram efetivar tombamentos e executar programas de proteção, às vezes em parceria com organismos internacionais como o BID, que financia o Programa Monumenta,[170][171] os governos estaduais e municipais também investem em museus e restauram bens móveis e imóveis, a iniciativa privada e universidades também realizam projetos de pesquisa e restauro, mas os recursos muitas vezes são escassos e as medidas adotadas são insuficientes diante do volume do acervo arquitetônico e artístico que precisa de medidas de conservação e proteção urgentes.[30][60][137][157][172][173] Considerando a grande proporção de obras sacras no acervo do Barroco brasileiro, muitas ainda em posse da Igreja, foi importante a publicação em 1992 pela Santa Sé da Carta circular 121/90/18 dirigida aos bispos e arcebispos de todo o mundo, onde se recomenda fortemente a dedicação de um cuidado especial ao patrimônio artístico da Igreja, rejeitando sua dispersão, os usos indevidos e a prática das reformas ou adulterações espúrias sem assessoria técnica competente - reconhecendo muito ter-se perdido por este motivo - e evitando entregar sua administração a pessoas sem conhecimento específico sobre arte e sobre a importância social desse legado, vendo na arte sacra um instrumento privilegiado para a Igreja cumprir sua missão espiritual e cultural.[167] Por outro lado, em parte ao Barroco, tão identificado com o Brasil, se deve o crescimento do setor do turismo cultural no país, e já se nota uma crescente conscientização da população sobre a importância artístico-cultural e o potencial de exploração econômica do legado Barroco, desde que mantido adequadamente, embora ainda sejam necessários muitos investimentos nesse setor.[148][149][150][152][157][174][175][176] Mas de fato, graças a essa evolução a população já se mostrou em muitos casos capacitada para colaborar valiosa e ativamente nas decisões sobre o patrimônio de suas comunidades.[177] A conscientização também é incentivada pela abordagem do tema em escolas, como forma de se fortalecer o senso de cidadania e os laços sociais. Segundo o professor José Carlos Carreiro, da Universidade de São Paulo, "resgatar a memória é essencial para que um povo se perceba como sujeito de sua própria história. Para evoluir, o homem precisa conhecer suas raízes".[60] Esse fatores conjugados podem oferecer uma perspectiva de melhor preservação do patrimônio sobrevivente para o futuro.[152][175][176][177]Referências
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Ligações externas
- Museu de Mariana - Projeto Acervo da Música Brasileira
- Música Brasileira do Período Colonial no Internet Archive - vários arquivos musicais para audição
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Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
O Barroco no Brasil encontrou um terreno receptivo para um rico florescimento. Fez sua aparição no país no início do século XVII, introduzido por missionários católicos, especialmente jesuítas, que para lá se dirigiram a fim de catequizar e aculturar os povos indígenas, no contexto da colonização portuguesa daquelas terras vastas e virgens, descobertas pelos europeus há meros cem anos. Ao longo do período colonial vigorou uma íntima associação entre a Igreja e o Estado, mas como na colônia não havia uma corte e tampouco as elites se preocuparam em construir palácios ou patrocinar as artes profanas senão no fim do período, deriva que a vasta maioria do legado barroco brasileiro esteja na arte sacra: estatuária, pintura e obra de talha para decoração de igrejas e conventos ou para culto privado.
As características mais típicas do Barroco, descrito usualmente como um estilo dinâmico, ornamental, dramático, cultivando os contrastes e a expressão emocional, mais seu caráter narrativo e sua plasticidade sedutora, veiculam um conteúdo programático articulado com requintes de retórica e grande pragmatismo. A arte barroca brasileira foi uma arte em essência funcional, prestando-se muito bem aos fins a que foi posta a servir: além de sua função puramente decorativa, facilitava a absorção da doutrina católica e dos costumes europeus pelos neófitos - índios e logo em seguida negros - mas também fomentava o cultivo e confirmava a fé e as tradições dos conquistadores cristãos, que haviam chegado para dominar e explorar todo esse grande território, impondo-lhe sua cultura. Com o passar do tempo, os elementos dominados, neste caso mais o negro do que o índio, mais os artesãos populares de uma sociedade em processo de integração e estabilização, começaram a dar ao Barroco importado feições novas, originais, e por isso considera-se que essa aclimatação constitua um dos primeiros testemunhos da formação de uma cultura genuinamente nacional.
O poema épico Prosopopeia (1601), de Bento Teixeira, é um dos seus marcos iniciais. Atingiu o seu apogeu na literatura com o poeta Gregório de Matos e com o orador sacro Padre Antônio Vieira, e nas artes plásticas seus maiores expoentes foram Aleijadinho e Mestre Ataíde. No campo da arquitetura esta escola se enraizou profundamente no Nordeste e em Minas Gerais, mas deixou grandes e numerosos exemplos também por quase todo o restante do país, do Rio Grande do Sul ao Pará. Quanto à música, por relatos literários sabe-se que foi também pródiga, mas ao contrário das outras artes, quase nada se salvou. Com o desenvolvimento do Neoclassicismo a partir das primeiras décadas do século XIX, a tradição barroca caiu progressivamente em desuso, mas traços dela seriam encontrados em diversas modalidades de arte até os dias de hoje.
Grande número de edificações e peças individuais de arte barroca já foram protegidas pelo governo brasileiro em suas várias instâncias, através de tombamento ou outros processos, atestando o reconhecimento oficial da importância do Barroco para a história da cultura brasileira. Centros históricos barrocos como os de Ouro Preto e Salvador, e conjuntos artísticos como o do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, receberam o estatuto de Patrimônio da Humanidade pela chancela da Unesco, e essa herança preciosa é um dos grandes atrativos do turismo cultural no país, ao mesmo tempo em que se torna um ícone identificador do Brasil, tanto para naturais da terra como para os estrangeiros.
Apesar de sua importância, boa parte da arquitetura e das obras de arte barrocas do Brasil estão em mau estado de conservação e exigem restauro urgente e outras medidas conservadoras, verificando-se frequentemente perdas ou degradação de exemplares valiosos em todas as modalidades artísticas; o país ainda tem muito a fazer para preservar parte tão importante de sua história, tradição e cultura. Por outro lado, parece crescer a conscientização da população em geral sobre a necessidade de proteger um patrimônio que é de todos e que pode reverter em benefício de todos, um benefício até econômico, se bem manejado e conservado. Museus nacionais a cada dia se esforçam por aprimorar suas técnicas e procedimentos, a bibliografia se avoluma, o governo têm investido bastante nesta área e até mesmo o bom mercado que a arte barroca nacional sempre encontra ajuda na sua valorização como peças merecedoras de atenção e cuidado.
Índice |
Características e contexto
O modelo europeu e seu abrasileiramento
O frequente contato com a Metrópole, por outro lado, possibilitou à arte colonial ter acesso a uma ininterrupta fonte de novas informações, sem que isso impedisse variações e interpretações locais. Os religiosos ativos no Brasil, oriundos de diversos países, muitos deles literatos, arquitetos, pintores e escultores, contribuíram para esta complexidade trazendo sua variada formação, que receberam em países como Espanha, Itália e França, além do próprio Portugal, e serviam como disseminadores, fundando escolas. O contato com o oriente, através das companhias de comércio marítimo, também deixou sua marca, visível em algumas pinturas orientalizantes, em lacas, porcelanas e estatuetas de marfim. No início do século XVIII, já existindo uma melhor comunicação interna e melhores condições de trabalho, começavam a circular nos ateliês do país diversos tratados teóricos e manuais práticos sobre arte, e os artistas locais buscavam avidamente reproduções em gravura de obras europeias, antigas e coevas, que lhes apresentavam uma iconografia muito heterogênea usada como modelo formal e adaptada em larga escala nas criações nacionais. A partir de 1760 observou-se a penetração da influência francesa, originando uma outra derivação, mais elegante, variada e leve, o chamado Rococó, que floresceu mais expressiva nas igrejas de Minas Gerais. Neste cadinho de influências diversificadas encontram-se até elementos de estilos já obsoletos como o gótico e o renascentista. É do resultado de todos estes entrecruzamentos que nasceu o original, eclético e por vezes contraditório Barroco que hoje se vê espalhado em praticamente todo o litoral do país e em grande parte de seu interior. A região Amazônica foi a menos afetada, a última a ser povoada. O sul também é relativamente pobre em herança barroca.[4][7][13][17][18] No fim do século XVIII o Barroco já estava perfeitamente aclimatado ao contexto nacional, já tendo dado inumeráveis frutos anteriores de alto valor. Foi quando apareceram em Minas Gerais - um dos maiores pólos culturais e econômicos do Brasil daquela época - as duas figuras célebres que o levaram a uma culminação, e que iluminaram também o seu fim como corrente estética dominante: Aleijadinho na arquitetura e na escultura, e na pintura Mestre Ataíde. Eles epitomizam uma arte que havia conseguido amadurecer e se adaptar ao ambiente de um país tropical e dependente da Metrópole, ligando-se aos recursos e valores regionais e constituindo um dos primeiros grandes momentos de originalidade nativa, de brasilidade genuína.[7][13] Mas o chamado "Barroco mineiro" mais típico, que eles representam tão bem, para muitos estudiosos já não é mais propriamente Barroco, e sim Rococó, o que reflete as dúvidas ainda existentes entre a crítica sobre se o Rococó é um estilo independente ou se representa apenas a fase final do Barroco. Ao longo deste artigo ambos serão tratados como uma unidade.[19][20][21][22][23][24][25] De qualquer maneira, o grande ciclo artístico de onde aqueles artistas surgiram foi logo depois abruptamente interrompido com a imposição oficial da novidade neoclássica, a partir da chegada da corte portuguesa ao Brasil em 1808 e da atividade da Missão Artística Francesa.[7][26] A partir de então, perdendo o favorecimento oficial e das elites, o Barroco iria gradualmente se dissolver. Mas é prova do vigor com que frutificou no país o fato de que seus ecos seriam ouvidos, em centros provincianos especialmente, praticado por artesãos populares, até a contemporaneidade, ainda que alguns autores estabeleçam o início do século XX como o encerramento do ciclo do Barroco em território brasileiro. De fato, vários escritores já afirmaram que o Barroco nunca morreu e continua muito vivo na cultura nacional, sendo constantemente reinvocado e reinventado.[7][27][28][3][18][29][30]
O papel da Igreja Católica
Na Europa, a Igreja Católica foi, ao lado das cortes, a maior mecenas de arte neste período. Na imensa colônia do Brasil não havia corte, a administração local era confusa e morosa, e assim um vasto espaço social permanecia vago para a ação da Igreja e seus empreendedores missionários, que administravam além dos ofícios divinos uma série de serviços civis como os registros de nascimento e óbito, estavam na vanguarda da conquista do interior do território servindo como pacificadores dos povos indígenas e fundando novas povoações, organizavam boa parte do espaço urbano no litoral e dominavam o ensino e a assistência social mantendo colégios e orfanatos, hospitais e asilos. Construindo grandes templos decorados com luxo, encomendando peças musicais para o culto e dinamizando imensamente o ambiente cultural como um todo, e é claro ditando as regras na temática e na maneira de representação dos personagens do Cristianismo, a Igreja centralizou a arte colonial brasileira, com rara expressão profana notável. No Brasil, então, quase toda arte barroca é arte religiosa. A profusão de igrejas e escassez de palácios o prova. Lembre-se ainda que o templo católico não era apenas um lugar de culto, mas era o mais importante espaço de confraternização do povo, um centro de transmissão de valores sociais básicos e amiúde o único local relativamente seguro na muitas vezes turbulenta e violenta vida da colônia. Gradativamente houve um deslocamento neste equilíbrio em direção a uma laicização, mas não chegou a se completar no período de vigência do Barroco. As instituições leigas começaram a ter um peso maior por volta do século XVIII, com a multiplicação de demandas e instâncias administrativas na colônia que se desenvolvia, mas não chegaram a constituir um grande mercado para os artistas, não houve tempo. A administração civil ganhou força com a chegada da corte portuguesa em 1808, que transformou o perfil institucional do território.[31][32]Assim como em outras partes do mundo onde existiu, o Barroco foi também no Brasil um estilo movido em boa parte pela inspiração religiosa, mas ao mesmo tempo dando enorme ênfase à sensorialidade e à riqueza dos materiais e formas, num acordo tácito e ambíguo entre glória espiritual e prazer dos sentidos. Este pacto, quando as condições permitiram, criou algumas obras de arte de enorme complexidade formal, que nos fazem admirar a perícia do artesão e a inventividade do projetista - amiúde anônimos e de extrato popular. Basta uma entrada num dos templos principais do Barroco brasileiro para os olhos de pronto se perderem numa explosão de formas e cores, onde as imagens dos santos são emolduradas por resplendores, cariátides, anjos, guirlandas, colunas e entalhes em volume tal que em alguns casos não deixam um palmo quadrado de espaço à vista sem intervenção decorativa, com ouro a cobrir paredes e altares. Como disse Germain Bazin, "para o homem deste tempo, tudo é espetáculo".[12][33] Entenda-se essa prodigalidade decorativa na perspectiva da época: o religioso educava o povo em direção à apreciação das virtudes abstratas buscando seduzí-lo antes pelos sentidos corpóreos, especialmente através da beleza das formas. Mas tanta riqueza também era um tributo devido a Deus, por Sua própria glória. Apesar da denúncia protestante do excessivo luxo dos templos católicos, e da recomendação de austeridade pelo Concílio de Trento, o Catolicismo na prática ignorou as restrições, pois compreendia que "a arte pode seduzir a alma, perturbá-la e encantá-la nas profundezas não percebidas pela razão; que isso se faça em benefício da fé"'.[34][35] Esse cenário luxuriante era parte da própria essência da catequese católica durante o Barroco, então largamente influenciada pelos preceitos da Contra-Reforma. A arte da Igreja Católica contra-reformista definiu-se como proselitista, foi concebida primariamente como instrumento de combate ao protestantismo e resgate de fiéis evadidos, e deveria ser facilmente compreensível pelo povo, em larga medida analfabeto e dado ao cultivo de superstições. No Brasil colônia a ameaça protestante não existia, mas seu povo incluía uma maioria de pagãos - os negros e índios - e por isso o modelo continuava válido: precisava ser sedutora e didática, para que os pagãos fossem atraídos e convertidos, e os brancos parvos, bem ilustrados; seria para todos um meio de educação, impondo-lhes crenças, tradições e modelos de virtude e conduta. Ao mesmo tempo, fortaleceria a fé dos confirmados, estimulando seu aperfeiçoamento. Na sociedade colonial, onde havia abismos intransponíveis entre as classes sociais, onde imperava a escravidão e os índios e negros, na prática e com rara exceção, nem eram considerados seres humanos, mas mera propriedade privada, instrumento de exploração e fonte de lucro, uma religião unificada servia também como uma forma de amortecimento dessas graves desigualdades e tensões, possibilitando que o poder colonizador melhor as controlasse, e até as justificasse, na perspectiva da união formal entre Igreja e Estado, onde a Igreja em muito contribuía com sua doutrina e arte sacra para a manutenção do status quo social e político. A educação e a catequese se estruturavam num modelo retórico, imitativo e descritivo, e durante o Barroco, muito por influência jesuítica, este modelo adquiriu um forte sentido cenográfico e declamatório, expressando-se cheio de alegorias, hipérboles e outras figuras de linguagem, num discurso de largo voo e minuciosa argumentação, às vezes excessiva e rocambolesca para o gosto moderno. Tal característica se traduziu plasticamente na extrema complexidade da obra de talha, nos fortes contrastes e na convoluta movimentação das formas estatuárias, pictóricas e arquiteturais das artes barrocas em todos os países onde o estilo prosperou, pois era a expressão visível do prolixo espírito da época, e que no Brasil se manifestou do mesmo modo, como não poderia deixar de fazê-lo.[12][35][36][37][38][39] Segundo explicou Alfredo Bosi,
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- "Nas entranhas da condição colonial concebia-se uma retórica para as massas que só poderia assumir em grandes esquemas alegóricos os conteúdos doutrinários que o agente aculturador se propusera incutir. A alegoria exerce um poder singular de persuasão, não raro terrível pela simplicidade de suas imagens e pela uniformidade da leitura coletiva. Daí o seu uso como ferramenta de aculturação, daí a sua presença desde a primeira hora da nossa vida espiritual, plantada na Contra-Reforma que unia as pontas do último Medievo e do primeiro Barroco".[39]
- "Nunca vi tantas lágrimas em Paixão como vi nesta, porque desde o princípio até o cabo, foi uma contínua grita e não havia quem pudesse ouvir o que o padre dizia. E isso assim em homens como em mulheres, e (referindo-se às autoflagelações) saíram umas cinco ou seis pessoas quase mortas, as quais por muito espaço não tornaram a si.... E houve pessoas que diziam desejarem de se irem meter em parte onde não vissem gente e fazerem toda sua vida penitência de seus pecados".[41]
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- "A religião foi o grande princípio de unidade no Brasil. Ela impôs às diversas raças aqui misturadas, trazendo cada uma um universo psíquico diferente, um mundo de representações mentais básico, que facilmente se superpôs ao mundo pagão, no caso dos índios e dos negros, através da hagiografia, tão adequada para abrir caminho ao cristianismo aos oriundos do politeísmo".[37]
As artes
Arquitetura
Edifícios da Igreja
Os primeiros edifícios sacros de algum vulto do Brasil foram erguidos a partir da segunda metade do século XVI, quando algumas vilas já dispunham de população que o justificasse. Foram os casos de Olinda e Salvador. As mais simples empregaram a técnica do pau-a-pique, sendo cobertas com folhas de palmeira, mas desde logo os missionários se preocuparam com o aspecto da durabilidade e solidez dos edifícios, preferindo sempre que possível edificar em alvenaria, embora muitas vezes, por circunstâncias várias, fossem obrigados a usar a taipa ou o adobe. As plantas buscavam antes de tudo a funcionalidade, compondo basicamente um quadrilátero sem divisão em naves e sem capelas laterais, com uma fachada elementar que implantava um frontão triangular sobre uma base retangular, e pode-se dizer que não havia, nesse período inaugural, maior preocupação com ornamentos. Este estilo, cuja austeridade remetia aos edifícios clássicos, conheceu-se pelo nome de "arquitetura chã". Em 1577 chegou a Salvador o frei e arquiteto Francisco Dias, com a missão declarada de introduzir melhoramentos técnicos e um refinamento estético nas igrejas da colônia. Trazia a influência de Vignola, cujo estilo caíra no agrado da corte portuguesa, e fora o autor do primeiro templo barroco na Europa, a Igreja de Jesus, em Roma, que se tornou imediatamente um modelo para muitas outras igrejas jesuítas pelo mundo. No Brasil o modelo foi adaptado, prescindindo da cúpula e do transepto, mantendo o esquema da nave única, mas por outro lado se favoreceram as torres.[44]Apesar das melhorias, até meados do século XVII os edifícios jesuítas, concentrados no nordeste, se mantiveram externamente nos tradicionais contornos de grande simplicidade, no que influenciaram outras ordens religiosas, reservando para os interiores o luxo que foi possível acrescentar, em altares entalhados, pinturas e estatuária. Entretanto, se os jesuítas foram bastante fiéis ao modelo italiano original, os franciscanos se permitiram introduzir variações nas fachadas, que podiam ser precedidas de um alpendre ou incluir uma galilé, enquanto que o campanário se deslocava para trás. No interior, a capela-mor franciscana tendia a ser menos profunda do que a jesuítica, e a ausência de naves laterais podia ser compensada por dois deambulatórios longitudinais estreitos. Próxima deste modelo é a Igreja de Santo Antônio em Cairu, considerada a primeira a exibir traços claramente barrocos. Seu projetista, o frei Daniel de São Francisco, criou a fachada num esquema de triângulo escalonado, com volutas fantasiosas no frontão e nas laterais; foi uma completa novidade, sem paralelos mesmo na Europa.[45][46][47] Mas é de assinalar que, se por um lado as ornamentações de fachada e interior se tornaram cada vez mais suntuosas e movimentadas, tipificando o Barroco, as estruturas dos edifícios, ao longo de toda a trajetória do Barroco no país, pouco se afastaram do que determinava o estilo chão.[48] Durante a dominação holandesa no nordeste muitas das edificações católicas foram destruídas, e na segunda metade do século XVII, após a explusão dos invasores, o esforço principal se concentrou na restauração e reforma das estruturas pré-existentes, com relativamente poucas fundações novas.[45] A esta altura o Barroco já era o estilo dominante. Mas recebia outras influências, como a de Borromini, emprestando mais movimento às fachadas com a adição de aberturas em arco, gradis, relevos e óculos. Nos interiores, a decoração também ganhava em riqueza, mas os esquemas eram algo estáticos, no que se convencionou chamar de "estilo nacional português".[49] Com o tempo, as fachadas adquiriam mais verticalidade e movimento, com aberturas em formas inusitadas - pera, losango, estrela, oval ou círculo - e os frontões, mais curvas, relevos em pedra e estatuária. Exemplos são a Matriz de Santo Antônio e a Concatedral de São Pedro dos Clérigos, em Recife, e em Salvador a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.[50] Um fenômeno um tanto diferente se verificou nas Reduções do sul, embora neste período aquele território ainda pertencesse à Espanha. Lá as construções mostraram desde logo um caráter mais monumental, e com uma maior variedade de soluções estruturais, com pórticos, colunatas e frontispícios elaborados. Também nas Reduções se desenvolveu um notável programa urbanístico para o aldeamento dos indígenas. Hoje em ruínas, parte desse núcleo de arquitetura civil e religiosa sulina foi declarado Patrimônio da Humanidade.[45] A partir de meados do século XVIII, sob influência do Rococó francês, se percebe no exterior dos edifícios um aligeiramento nas proporções, tornando-os mais elegantes; as aberturas são mais amplas, permitindo uma maior penetração da luz externa, e o detalhamento nos relevos em pedra chega a um alto nível.[7][51] O Rococó também deu importantes frutos no nordeste, como o Convento e Igreja de São Francisco em João Pessoa, considerado por Bazin a mais perfeita em seu gênero naquela região.[52] Deve-se ainda lembrar em todas as fases a contribuição popular em muitos projetos de comunidades mais pobres, em matrizes e pequenas capelas que pontilham os sertões brasileiros, contribuindo para a diversidade e simplificando proporções, ornamentos, técnicas e materiais em soluções criativas, de grande plasticidade.[40][53] E paralelamente à construção de igrejas, os religiosos sempre construíram conventos, mosteiros, colégios e hospitais, alguns deles de avantajadas dimensões e que, nos dois primeiros casos, podiam ser decorados com um luxo comparável ao encontrado nas mais ricas igrejas.[40][54][55]
Arquitetura civil
Na arquitetura civil, privada ou pública, o Barroco deixou relativamente poucos edifícios de maior vulto, sendo em linhas gerais bastante modestos. Por outro lado, os conjuntos dos centros históricos de algumas cidades (Salvador, Ouro Preto, Olinda, Diamantina, São Luís e Goiás), declarados Patrimônio da Humanidade pela Unesco, ainda permanecem em boa parte intactos, apresentando uma paisagem ininterrupta extensa e valiosíssima de arquitetura civil do barroco, com soluções urbanísticas muitas vezes originais e com farta ilustração de todas as adaptações do estilo aos diferentes estratos sociais e às suas transformações ao longo dos anos.[40][56][57][58][59][60] Muitas outras cidades também preservam agrupamentos significativos de casario colonial, como Paraty,[61] Marechal Deodoro,[62] Cananéia[63] e Rio Pardo.[64] A residência, durante o período Barroco, caracterizou-se pela grande heterogeneidade de soluções estruturais e no uso dos materiais, muitas vezes empregando técnicas aprendidas com os índios, uma diversidade que se encontra entre ricos e pobres. Entretanto, no ambiente urbano a fórmula que se tornou mais frequente, herdada da arquitetura portuguesa, foi de uma estrutura térrea, com fachada abrindo direto para a rua e pegada à das casas vizinhas, e com cômodos enfileirados, muitas vezes mal ventilados, mal iluminados e de uso múltiplo. Nessa estrutura simples, não raro ampliada em sobrados de dois ou até quatro andares, os traços distintivos do Barroco podem ser mais facilmente identificados em alguns detalhes, como os telhados curvos com beirais terminados em pontas arrebitadas, os arcos abatidos nas vergas, os caixilhos e gelosias ornamentais nas janelas, em alguma pintura decorativa e azulejaria, já que de regra a residência colonial sempre teve estrutura muito austera e foi parcamente mobiliada e decorada. No interior rural a diversidade foi muito mais pronunciada.[40] Mereceriam nota muitos solares e antigas sedes de engenhos e fazendas, como as casas bandeiristas,[65] a Casa das Onze Janelas,[66] o Solar do Visconde de São Lourenço, a Fazenda Imperial de Santa Cruz,[67] a Fazenda Mato de Pipa[68] a Fazenda de Sant'Ana, a Fazenda Salto Grande, a Fazenda Tatu,[69] o Solar Ferrão[70] e vários outros casarões rurais e urbanos de famílias abastadas, que se por um lado podem ser bastante espaçosos e confortáveis, até imponentes, em geral têm linhas muito despojadas e econômica decoração interna, e são muitas vezes apenas uma magnificação do modelo da habitação popular, privilegiando antes a funcionalidade do que o luxo. No litoral nordestino são notáveis os sobrados azulejados, pelo seu rico efeito decorativo e pelas soluções criativas que encontraram para amenizar os efeitos do clima úmido e quente da região, havendo uma grande concentração de exemplares no Centro Histórico de São Luís.[40][71][72] O despojamento da arquitetura civil poderia causar surpresa no caso dos casarões da elite, dada a grande riqueza de muitas famílias radicadas na terra, mas explica-se pelo fato de que o contexto da vida colonial foi marcado pela dispersão, pela instabilidade e mobilidade, com famílias fracamente estruturadas, o que se refletiu no caráter provisório, simplificado e improvisado de tantas edificações, evitando-se gastos com o que seria, a princípio, usado por pouco tempo. Na verdade, quanto menos se gastasse na colônia, melhor, pois nos primeiros séculos da colonização boa parte dos portugueses se mudava para aqueles longínquos e ermos Brasis imaginando ficar só por temporada, ansiando voltar para Portugal tão pronto fizesse fortuna, deixando para trás uma terra admitidamente bela e rica, mas inóspita e selvagem, considerada de clima insalubre, onde a sobrevivência exigia árduo esforço e estava sempre em perigo - a vida na colônia era vista por muitos como um acabrunhante desterro.[16][40][73] Desde o início do processo colonizador aquela sensação de impermanência ficara evidente, como se nota, por exemplo, na crítica do frei Vicente do Salvador, formulada em 1627 em sua Historia do Brazil, à ojeriza geral que despertava a ideia de ter o Brasil como residência definitiva:-
- "Os povoadores, os quais por mais arraigados, que na terra estivessem, e mais ricos que fossem, tudo pretendiam levar a Portugal, e se as fazendas e bens que possuíam soubessem falar também lhes haveriam de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é 'papagaio real para Portugal'; porque tudo querem para lá, e isto não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem, e a deixarem destruída".[16]
O caso mineiro
- "a conjugação de curvas e de retas ou de planos, criando pontos e arestas de contenção, nas plantas, nos alçados e nos espaços internos;
- "a organização das frontarias tendo como centro de composição a portada esculpida em pedra-sabão; portadas que se constituem, visualmente, em núcleo, de onde derivam os demais elementos: pilastras, colunas, cimalhas, frontão, e para a qual eles convergem.[83]
Artes visuais
Sistema de produção
A condição social dos artistas e as circunstâncias de sua atuação no Brasil colonial ainda são objeto de polêmica. Não se sabe exatamente se sua atividade permanecia subordinada ao estatuto das artes mecânicas e artesanais ou se já era considerada parte das artes liberais. Ao que parece, uma forma corporativa semelhante à guilda predominou até o advento do Império, organizada da seguinte maneira: o mestre ficava no topo da hierarquia, era responsável final pelas obras e pela formação e habilitação de novos aprendizes; abaixo estava o oficial, um profissional preparado, mas sem graduação para arrematar obras de vulto; em seguida vinham os auxiliares, os jovens aprendizes, e os escravos ficavam na base. Também há boas evidências para crer que mesmo tendo havido algum progresso no status social dos artistas perto do final do Barroco, os trabalhadores manuais como eles, onde se incluíam muitos escravos, ainda enfrentavam um arraigado desprezo por parte das elites.[36][88]Grupos temáticos
A pintura e a escultura barrocas se desenvolveram como artes coadjutoras para obtenção do efeito cenográfico total da arquitetura sagrada, a igreja, onde todas as especialidades conjugavam esforços em busca de um impacto sinestésico arrebatador. Uma vez que a arte barroca é essencialmente narrativa, cabe mencionar os principais grupos temáticos cultivados no Brasil. O primeiro é extraído do Antigo Testamento, oferecendo visualizações didáticas da cosmogênese, da criação do Homem e dos fundamentos da fé dados pelos patriarcas hebreus. O segundo grupo deriva do Novo Testamento, centralizado em Jesus Cristo e sua doutrina de Salvação, temática elaborada através de muitas cenas mostrando seus milagres, suas parábolas, sua Paixão e Ressurreição, elementos que consolidam e justificam o Cristianismo e o diferenciam da religião judaica. O terceiro grupo gira em torno dos retratos de autoridades da Igreja, os antigos patriarcas, os mártires, santos e santas, os clérigos notáveis, e por fim vem o grupo temático do culto mariano, retratando a mãe de Jesus em suas múltiplas invocações.[89]Pintura
Como ocorreu em todas as artes, a Igreja Católica foi a maior patrona da pintura colonial. Para a Igreja a pintura tinha como função básica auxiliar na catequese e confirmar a fé dos devotos. A necessidade de ser facilmente compreensível pelo povo inculto significou que o desenho predominasse sobre a cor. O desenho, na conceituação da época, pertencia à esfera da razão e definia a ideia a ser transmitida, e a cor fornecia a ênfase emocional necessária à melhor eficiência funcional do desenho. Desta forma, toda a pintura barroca é figurativa, retórica e moralizante. Cada cena trazia uma série de elementos simbólicos que constituíam uma linguagem visual, sendo usados como palavras na construção de uma frase. O significado de tais elementos era, na época, de domínio público. As imagens dos santos mostravam seus atributos típicos, como os instrumentos do seu suplício, ou objetos que estiveram ligados à sua carreira ou ilustrassem suas virtudes. Por exemplo, São Francisco podia aparecer rodeado de objetos associados à penitência e à transitoriedade da vida: o crânio, a ampulheta, o rosário, o livro, o açoite e o cilício.[90] Grande parte das pinturas barrocas brasileiras foi realizada em têmpera ou óleo sobre madeira ou tela, e inserida na decoração em talha. Sobrevivem alguns raríssimos exemplos da técnica do afresco no Mosteiro de São Bento no Rio e na Igreja dos Terésios em Cachoeira do Paraguaçú, mas não há registro de popularização da técnica.[91] Desde o início foram comuns os ex-votos, e no século XVIII se tornariam ainda mais disseminados. Eram em regra de fatura rústica, encomendados pelos devotos a artesãos populares, ou realizados pelo povo mesmo, em paga por alguma graça recebida ou em penhor de alguma promessa. Os ex-votos tiveram um papel importante no primeiro desenvolvimento da pintura colonial por constituírem uma prática frequente, o que se explica pelo cenário ainda selvagem onde as povoações se organizavam, onde não faltavam perigos de várias ordens, contra os quais a invocação dos poderes celestes para a ajuda e proteção era uma constante.[92][93] Do período inicial merecem citação alguns dos primeiros pintores atuantes no Brasil de que se sabe alguma coisa: Baltazar de Campos, ativo no Maranhão, produziu telas sobre a Vida de Cristo para a sacristia da Igreja de São Francisco Xavier; João Felipe Bettendorff, também no Maranhão, decorou as igrejas de Gurupatuba e Inhaúba, e Frei Ricardo do Pilar, ativo no Rio com uma técnica que se aproxima da escola flamenga, foi autor de um célebre Senhor dos Martírios. Lourenço Veloso, Domingos Rodrigues, Jacó da Silva Bernardes e Antonio Gualter de Macedo atuaram em diversos locais entre Pernambuco e Rio de Janeiro.[91] Frei Eusébio da Soledade, tido como fundador da escola baiana, pode ter estudado com Frans Post e Albert Eckhout, artistas da corte pernambucana de João Maurício de Nassau, durante a dominação holandesa do Nordeste.[94] O século XVIII viu a pintura florir em quase todas as regiões do país, formando os germes de escolas regionais e sobrevivendo maior número de identidades individuais conhecidas. A esta altura já circulava uma vasta quantidade de gravuras europeias, que reproduziam obras de mestres célebres ou ofereciam outros modelos iconográficos. Essas gravuras foram a principal fonte de inspiração para os pintores coloniais brasileiros, vários estudos já documentaram sua apropriação massiva de tais modelos, adaptando-os às necessidades e possibilidades de cada local. Serviam-lhes mesmo de escola, uma vez que não havia academias formais de arte e poucos eram os artistas bem preparados. Destes, quase só os missionários educados na Europa, os primeiros professores de pintura do Brasil. Contudo, como esse acervo iconográfico importado tinha um perfil muito heterogêneo, composto de imagens de diferentes épocas e estilos, decorre que a pintura barroca brasileira tem um caráter igualmente dinâmico e multifacetado, não sendo possível estudá-la sob um prisma de unidade e coerência formal.[17][95][96] Contribuiu para o enriquecimento da pintura setecentista a introdução, na década de 1730, por Antônio Simões Ribeiro e Caetano da Costa Coelho, em Salvador e no Rio respectivamente, das primeiras composições de perspectiva arquitetural ilusionística no Brasil, uma técnica que logo ganhou muitos adeptos, com destaque para José Joaquim da Rocha e a escola mineira.[95][97] José Teófilo de Jesus merece nota pela singularidade de seu talento versátil, um dos maiores representantes da escola baiana, abordando temas mitológicos e alegóricos, raros na produção colonial. É um bom exemplo da vitalidade do Barroco brasileiro, pois suas obras de maior vulto surgiram já no século XIX, permanecendo em atividade até cerca de 1847, pouco tocado pelo Neoclassicismo. No Rio, no nordeste, em São Paulo, já havia em meados do século XVIII ativas escolas regionais. Mas foi em Minas, outro centro florescente, que nasceu e atuou Mestre Ataíde, o maior mestre da pintura barroca brasileira e tido como um dos pioneiros na organização de uma estética nativa; pintou um teto muito louvado na Igreja de São Francisco de Ouro Preto, além de ter deixado muitas outras obras meritórias. É interessante ainda o belo acervo remanescente de azulejaria pintada, em boa parte importado de Portugal, onde a técnica tinha grande aceitação, e que deu uma nota característica a inúmeros conventos, igrejas e casarios barrocos brasileiros.[91][95][98]- João Nepomuceno Correia e Castro: Imaculada Conceição, Museu da Inconfidência
- Azulejos no Convento de São Francisco, Olinda
- José Teófilo de Jesus: O Rapto de Helena, Museu de Arte da Bahia, raro exemplo de tema profano
- José Leandro de Carvalho: Retrato de D. Maria I, um dos raros retratos oficiais no Brasil, Museu Histórico Nacional
Estatuária
O Barroco originou uma vasta produção de estatuária sacra. Parte integral da prática religiosa, a estatuária devocional encontrava espaço tanto no templo como no domicílio privado. As primeiras peças barrocas do país foram de importação portuguesa, e vieram com os missionários. Ao longo de todo o Barroco a importação de obras continuou, e muitas das que ainda existem em igrejas e coleções museais são de procedência europeia. Mas a partir do século XVII começaram a se formar escolas locais de escultura, compostas principalmente por religiosos franciscanos e beneditinos, mas com alguns artesãos laicos, que trabalhavam principalmente o barro. Esta foi a técnica em que o indígena pôde contribuir mais ativamente, ensinando ao branco técnicas de pintura em cerâmica e conhecimentos sobre pigmentos vegetais como a tabatinga e o tauá que dominava há milênios.[99]Já os jesuítas deram preferência à madeira, que em breve viria a predominar. Índios reduzidos também deram sua colaboração como santeiros, especialmente nas reduções do sul e em algumas do nordeste, e nesses casos muitas vezes traços étnicos índios são encontrados no rosto das imagens, como se verifica em algumas esculturas dos Sete Povos das Missões. Criados aqui ou não, dificilmente haveria uma casa que não possuísse ao menos algum santo de devoção esculpido: a estatuária se tornou um bem de largo consumo, quase onipresente, com exemplares de grande porte, em tamanho natural ou mesmo maior, até peças miniaturizadas para uso prático em viagens. Salvador em especial tornou-se um centro exportador de estatuária para os mais distantes pontos do país, criando uma escola regional de tanta força que não conheceu solução continuidade senão no século XX. Outra escola nordestina importante foi a de Pernambuco, com produção de alta qualidade mas ainda pouco estudada. A maioria das obras que sobrevivem permanece anônima; não costumavam ser assinadas e as análises de estilo muitas vezes não são suficientes para se determinar com precisão sua origem, uma vez que a iconografia seguia padrões convencionados que valiam por toda parte e o intercâmbio de obras pelo país era grande, mas alguns nomes foram preservados pela tradição oral ou através de recibos de pagamento de obras.[100][101] Entre eles, podemos citar Agostinho de Jesus, ativo no Rio e São Paulo, e frei Agostinho da Piedade, de Salvador, considerados os fundadores da escultura brasileira; José Eduardo Garcia, Francisco das Chagas, o Cabra, Félix Pereira Guimarães e Manuel Inácio da Costa, ativos em Salvador; Francisco Xavier de Brito, atuando entre Rio e Minas, Manoel da Silva Amorim, em Pernambuco, Bernardo da Silva, da escola maranhense, Simão da Cunha e Mestre Valentim, no Rio de Janeiro. Na escola de Minas, Francisco Vieira Servas, José Coelho Noronha, Felipe Vieira, Valentim Correa Paes e Bento Sabino da Boa Morte, entre outros.[101][28] Com a sedimentação da cultura nacional por volta da metade do século XVIII, e com a multiplicação de artífices mais capazes, nota-se um crescente refinamento nas formas e no acabamento das peças, e aparecem imagens de grande expressividade. Como descreveu Ailton de Alcântara, "é neste contexto que humildes, porém habilidosos homens, valendo-se da perspectiva formal que apreendiam por meio da pregnância, orientados apenas por tradição oral e pelo exercício de repetição, vão ser identificados no meio em que viviam como os fazedores de santos e diversos outros objetos de devoção".[102] Entretanto, a importação de estatuária diretamente de Portugal continuou e mesmo cresceu com o enriquecimento da colônia, uma vez que as classes superiores preferiam exemplares mais bem acabados e de mestres mais eruditos. Ao mesmo tempo se multiplicaram as escolas regionais, com destaque para as do Rio, São Paulo, Maranhão, Pará, e Minas, onde a participação do negro e do mulato foi essencial e onde se desenvolveram traços típicos regionais mais distintos, que podiam incorporar elementos arcaizantes ou de várias escolas em sínteses ecléticas. Aleijadinho representa o coroamento e a derradeira grande manifestação de escultura barroca brasileira, com obra densa e magistral espalhada na região de Ouro Preto, especialmente no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, que possui uma série de grandes grupos escultóricos nas estações da Via Crucis, em madeira policroma, e os célebres Doze Profetas, de pedra-sabão, no adro da igreja.[100] A maior parte da estatuária barroca brasileira acabou por ser criada em madeira policroma. O barro foi usado principalmente no início, embora nunca fosse abandonado, e a pedra foi ocorrência rara, mais reservada à decoração de fachadas e monumentos públicos.[103] Por regra a estatuária era pintada com cores vivas e não raro recebia douramentos, sendo decorada com ornamentos acessórios como coroas e resplendores em prata e ouro, que podiam ser cravejados de pedras preciosas. Também podia receber olhos de vidro, dentes de marfim e vestidos de tecido. As grandes estátuas de roca, principalmente os tipos do Senhor dos Passos e da Mater Dolorosa, que muito se levavam em procissões, podiam ter até cabelos reais, a fim de enfatizar seu aspecto ilusionístico, e membros articulados, para possibilitar seu uso em representações teatrais sacras. Para a pintura a imagem em material bruto recebia uma camada de um preparo à base de argila e cola, conhecido como "bolo armênio", que preenchia os poros da madeira ou do barro e criava uma superfícia lisa para o trabalho posterior. Se as vestes da figura fossem ter douramento, eram aplicadas sobre a camada do bolo armênio finíssimas folhas de ouro, que podiam ser polidas para realçar o brilho, ou não, criando um dourado fosco. O prateamento era mais raro, e mais custoso, pois não havia minas de prata no Brasil e o material era obtido da fundição de moedas peruanas. Sobre o ouro ou prata era aplicada a tinta, óleo ou têmpera oleosa, e para que o metal precioso subjacente aparecesse a tinta era removida nas partes necessárias com estiletes ou com um ponteador, o que possibilitava o desenho de intrincados padrões florais ou abstratos, imitando brocados e bordados de tecidos verdadeiros, dando à imagem um aspecto suntuoso, como era o gosto barroco. A esta decoração particular se deu o nome de "estofamento". A pintura do rosto, mãos, pés ou outras partes visíveis do corpo se chamava "encarnação", e como o nome sugere, almejava imitar o efeito da carne humana. Nos exemplares em marfim, mais raros, o material podia ser deixado aparente.[104][105] A estatuária em posse privada muitas vezes era entronizada em capelinhas ou oratórios, que à medida que subiam as posses de seus proprietários podiam chegar a ser móveis luxuosos e muito ornamentados.[106][107] Quando uma imagem se deteriorava podia ser descartada, lançando-a ao mar, a um rio, enterrando-a numa igreja ou depositando-a em algum oratório de beira de estrada. Em festas solenes, ou como pagamento de alguma promessa, estatuária mais antiga podia ser reformada, talhando-se novos detalhes e realizando uma repintura. Ou podia ganhar vestidos bordados com seda, ouro e pedrarias, e receber jóias como coroas, resplendores e insígnias.[100] Um outro tipo de estatuária que se tornou muito popular foi o grupo do presépio, um conjunto de figuras que reconta o nascimento de Jesus e a visita dos Reis Magos, montado em casas e igrejas na época do Natal. A tradição foi inaugurada, ao que parece, pelo padre José de Anchieta, que, ajudado por índios, modelava pequenas figuras em barro para ensinar-lhes a doutrina cristã. Alguns presépios brasileiros chegaram a possuir dezenas de peças, com muitas cenas paralelas e um cenário miniaturizado para contextualizá-las.[99][108] Em meados já do século XIX floresceu em São Paulo uma escola de estatuária popular em barro que conheceu enorme demanda, produzindo as chamadas "paulistinhas", imagens muito singelas para o culto doméstico, mas que seguiam os moldes da tradição barroca. Dois de seus artesãos mais conhecidos foram Benedito Amaro de Oliveira e Dino Pituba.[109]
- Nosso Senhor dos Passos, estátua de roca, século XVIII-XIX, Capela Senhor dos Passos, Santa Casa de Porto Alegre
- Oratórios para estatuária privada no Museu Abelardo Rodrigues
Talha dourada e outras modalidades escultóricas
A talha dourada, uma modalidade de escultura essencialmente decorativa, deve ser abordada em mais detalhe em vista da sua grande riqueza no Brasil e da sua extraordinária importância decorativa ao longo de todo o desenvolvimento do Barroco, muitas vezes adquirindo proporções monumentais e modificando a percepção dos espaços arquitetônicos internos. Como os volumes estruturais das igrejas permaneceram sempre bastante simples e estáticos, atestando a longevidade e vigor da tradição da arquitetura chã, foi na decoração dos interiores, nos retábulos e altares, onde a talha domina, que o Barroco brasileiro pôde se expressar com sua força total e ser mais "tipicamente Baroco": suntuoso, extravagante, dinâmico e dramático. Foi no nordeste, primeiro em Salvador e em Recife, que deu seus primeiros frutos importantes. Partindo do ecletismo e preciosismo dos retábulos maneiristas da tradição portuguesa, eles mesmos já de enorme requinte e complexidade, como provam os importantes retábulos da Catedral de Salvador e da Catedral de São Luís do Maranhão, ambos descendência direta do Maneirismo, a talha barroca se formou atualizando outros arcaísmos, como os arcos plenos concêntricos dispostos em profundidade, comuns nos portais das igrejas românicas, abundantes em todo o território português, e as colunetas torcidas, já existentes no período gótico. Os espaços entre esses elementos estruturais dos retábulos, bem como suas superfícies, foram entalhados com profusa ornamentação policroma e folheada a ouro, na forma de ramagens e guirlandas de flores, entremeadas, nos exemplos mais ricos, de anjos, brasões, insígnias, pássaros, atlantes e cariátides, com grande homogeneidade estilística.[49][53][110]Essa moldura, que tinha um caráter cenográfico, criava um nicho, preenchido com um pedestal para a estátua de um santo. A base dos retábulos era uma caixa ou mesa também decorada, que podia ser substituída por colunas de sustentação. Os retábulos principais nas capelas-mor podiam ser de grande imponência. A essa conformação específica se deu o nome de "estilo nacional português", que se tornou o modelo dominante para decoração de interiores de meados do século XVII e até ao início do século XVIII. Naturalmente, houve várias interpretações do modelo, e as diferentes ordens religiosas, em particular, adotaram variações próprias que se tornaram típicas; jesuítas tendiam a ser mais sóbrios, já franciscanos preferiam um luxo faustoso. Nos tetos, o estilo nacional se cristalizou na fórmula dos "caixotões" ou "cofres", um trabalho de talha com áreas vazadas, onde se inseriam pinturas. Ilustrativas desta etapa são a Capela Dourada em Recife, uma das primeiras neste estilo, e a Igreja de São Francisco de Salvador, ilustrada na abertura deste artigo, uma das mais ricas do Brasil; sua luxuriante talha dourada cobre inteiramente todas as superfícies internas, com impactante efeito de conjunto.[49][53][110] Em seguida se observa penetrar uma nova tendência, chamada de Barroco joanino, caracterizada pela explosão da talha, assumindo relevos de grande profundidade e projetando-se do plano da parede, com caráter estatuário e arquitetônico, apresentando cariátides, anjos e guirlandas, coroamentos com sanefas, falsos cortinados, dosséis, cúpulas vazadas ou bulbosas, multiplicando os motivos decorativos em relevo a ponto de obscurecer os elementos estruturais ou perverter sua lógica primitiva, dissolvendo-os na ornamentação. Também ocorre a introdução do branco na pintura dos fundos, dando maior vivacidade e contraste à policromia da madeira. Um excelente exemplo do estilo joanino está na Igreja dos terceiros de São Francisco, no Rio, ilustrada ao lado. Na segunda metade do século XVIII passou a predominar a influência francesa, gerando uma derivação rococó, mais leve e elegante, mais aberta e rarefeita, cujo maior florescimento ocorreu em Minas Gerais, se caracterizando pelos retábulos com coroamento de grande composição escultórica e com elementos ornamentais na forma de conchas, laços, grinaldas e flores, com fundos brancos e douramentos nas partes em relevo.[49][110] Também no nordeste o Rococó decorou ricamente muitas igrejas, como a Matriz de Santo Antônio em Recife, e no Rio são notáveis a Igreja dos Terceiros do Carmo, Santa Cruz dos Militares e a de Santa Rita, entre outras. Em grande número de casos em todo o Brasil uma talha rococó substituiu a talha barroca mais antiga, e ao longo dos séculos seguintes se verificaram frequentes renovações e reformas nas decorações internas, de modo que uma significativa parte do aspecto primitivo das igrejas barrocas brasileiras já foi desfigurado.[110][111] Merece nota, finalmente, a extensa produção de outras formas de escultura ornamental, em mobiliário entalhado e nas portadas e frontões arquiteturais em pedra, que chegaram em muitos casos a altos níveis de refinamento e complexidade. Também sobrevive um rico acervo de objetos litúrgicos de caráter escultórico produzidos em metal, em geral a prata, tais como tocheiros, lampadários, turíbulos, navetas, tabernáculos, cruzes processionais e ostensórios.[40][107]
- Importante mobiliário entalhado no Convento de São Francisco de Olinda
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