quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Flor da Idade - Chico Buarque

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia Pra ver Maria A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia A porta dela não tem tramela A janela é sem gelosia Nem desconfia Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor
Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família A armadilha A mesa posta de peixe, deixe um cheirinho da sua filha Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha Que maravilha Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor
Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua A gente sua A roupa suja da cuja se lava no meio da rua Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua E continua Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo que amava Juca que amava Dora que amava Carlos amava Dora que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha
INTERTEXTUALIDADE

Por Ana Lucia Santana

A intertextualidade é uma espécie de conversa entre textos; esta interação pode aparecer explicitamente diante do leitor ou estar em uma camada subentendida, nos mais diferentes gêneros textuais. Para compreender a presença deste mecanismo em um texto, é necessário que a pessoa detenha uma experiência de mundo e um nível cultural significativos.
O intertexto só funciona quando o leitor é capaz de perceber a referência do autor a outras obras ou a fragmentos identificáveis de variados textos. Este recurso assume papéis distintos conforme a contextura na qual é inserido. A pressuposta cultura geral relacionada ao uso deste mecanismo literário deve, portanto, ser dividida entre autores e leitores.
E não há limite para as esferas do conhecimento que podem ser acessadas tanto pelo produtor do texto, quanto por seu receptor. Isto significa que o intertexto não está somente ligado ao contexto literário. Ele pode estar presente na pintura, a qual pode interagir com uma foto produzida séculos depois; na publicidade, quando, por exemplo, o ator que anuncia o Bom Bril está trajado como a Mona Lisa, criada por Leonardo da Vinci.
No caso desta propaganda, o intérprete compara a forma como o ‘Mon Bijou” deixa a roupa bem limpa e perfumada, com a criação de uma obra-prima, alusão à criação de da Vinci. Seu idealizador, portanto, faz uma analogia entre o produto que deseja vender e a elaboração de uma imagem pictórica, levando ao consumidor a possibilidade de se atualizar culturalmente.
Há pelo menos sete tipos de intertextualidade. A Epígrafe é um pequeno trecho de outra obra, ou mesmo um título, que apresenta outra criação, guardando com ela alguma relação mais ou menos oculta. A Citação é um fragmento transcrito de outro autor, inserido no texto entre aspas.
A Paráfrase é a réplica de um escrito alheio, posicionado em um uma obra com as palavras de seu autor. Este deve, portanto, esclarecer que o trecho reproduzido não é de sua autoria, citando a fonte bibliográfica pesquisada, a fim de não cometer plágio. A Paródia é uma distorção intencional de outro texto, com objetivos críticos ou irônicos.
O Pastiche é a imitação rude de outros criadores – escritores, pintores, entre outros – com intenção pejorativa, ou uma modalidade de colagens e montagens de vários textos ou gêneros, compondo uma espécie de colcha de retalhos textual. A tradução se insere na esfera da intertextualidade porque o tradutor recria o texto original.
A Referência é o ato de se mencionar determinadas obras, de forma direta ou indireta. A Alusão é uma figura de linguagem que se vale da referência ou da citação de um evento ou de uma pessoa, concreta ou integrante do universo da ficção, denominada interlocutor. Ela é igualmente conhecida como ‘intertextualidade’ ou ‘polifonia’.
O intertexto, portanto, não se refere apenas a textos literários, mas também a músicas, imagens – vídeos, filmes, todos os recursos visuais. Assim, em uma composição musical, no lançamento cinematográfico, na animação que se assiste em casa, na publicidade, nas pinturas e outras artes plásticas, enfim, em todas as linguagens artísticas, está presente a intertextualidade.

Fontes: http://drikamil-adriana.blogspot.com/2009/03/o-que-e-intertextualidade_4117.html http://pt.wikipedia.org/wiki/Intertextualidade http://pt.wikipedia.org/wiki/Pastiche http://pt.wikipedia.org/wiki/Alusão

Quadrilha

Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história
Outra recriação de Quadrilha foi feita por Chico Buarque de Holanda em sua canção Flor da idade (1975). Descrevendo o desabrochar da sexualidade na adolescência, o compositor reproduz a estrura de composição do poema de Alguma Poesia:
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha

Alguma Poesia
Estudo do livro por Frederico Barbosa
Biografia por Sylmara Beletti
Em linguagem simples e acessível, Alguma Poesia, publicado em 1930, apresenta todo o espírito revolucionário do modernismo aliado ao humor, à ironia e ao dom de surpreender que caracterizam um dos maiores poetas da língua portuguesa em seu primeiro livro
A GERAÇÃO DE 30 NO BRASIL.
Depois da fase heróica do modernismo brasileiro, que realizou a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, lutando para implantar no país as inovações das vanguardas européias, surge uma geração de poetas e romancistas das mais férteis e ricas em toda a história da literatura brasileira.
Os modernistas de 22 abriram o caminho para que os novos escritores pudessem criar em liberdade, livres das amarras formais do academicismo e preocupados com a realidade brasileira.
Surgem, assim, durante a década de 30, romancistas regionalistas, como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado, que chamam a atenção para os problemas sociais das regiões mais carentes do Brasil, utilizando-se da linguagem coloquial e crítica herdada dos primeiros modernistas. Já os poetas não se pautam mais por uma atitude programática, e sim pela possibilidade de criação em todas as direções, utilizando tanto o verso livre, o "poema-piada" e as ousadias da geração de 22, quanto as formas fixas, como o soneto, a metrificação e as rimas da poesia mais tradicional.
A POESIA DA GERAÇÃO DE 30.
Alguns dos poetas surgidos na década de 30 viveram de perto a movimentação revolucionária de 1922. Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes publicaram poemas no maior órgão de divulgação das idéias vanguardistas, a Revista de Antropofagia (1928-29), de Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. Participam, portanto, ainda que como coadjuvantes, da fase heróica do modernismo.
O poema No meio do caminho, de Drummond, haveria de se converter no maior símbolo deste momento de ruptura com a literatura passadista.
Outros carregam uma herança indisfarçável do simbolismo, como Cecília Meireles; do romantismo, como Vinicius de Moraes e Augusto Frederico Schmidt; ou mesmo da poesia parnasiana, como Jorge de Lima.
A OBRA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.
Vivendo durante praticamente todo o século XX, esse mineiro de Itabira deixou uma das obras mais significativas da literatura brasileira.
Influenciado de início pelos poetas paulistas Oswald e Mário de Andrade, que conhece em 1924, e por Manuel Bandeira, a quem, no mesmo ano, envia poemas seus, publica seu primeiro livro, Alguma Poesia, em 1930. Esta primeira fase de sua obra é marcada por poemas irônicos, breves e coloquiais, como Quadrilha, Cota Zero, Cidadezinha Qualquer ou No meio do caminho, em que a vinculação ao primeiro momento do modernismo brasileiro é patente.
Já em um segundo momento, em que se sobressai o livro A Rosa do Povo (1945), sua obra volta-se para uma poesia mais reflexiva e participante, de teor social acentuado, em que o poeta se revela profundamente marcado tanto pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quanto pela experiência da ditadura do Estado Novo (1937-1945) no Brasil.
Durante a década de 50, a poesia de Drummond, em livros como Claro Enigma (1951) - assim como a de boa parte dos seus companheiros de geração - apresenta uma busca das fórmulas tradicionais de composição, como o soneto, recorrendo à metrificação regular, abandonando em parte o caráter experimental de sua fase inicial.
Este caráter é retomado, já sob influência da radicalidade experimental da poesia concreta, que surgiria em 1956, no livro Lição de Coisas (1962), em que muito da ironia e das preocupações formais da sua primeira fase são resgatadas.
A partir de então, já com 60 anos, Drummond deixa de inovar tanto, e sua poesia, influenciada por seu trabalho como cronista, vai adquirindo um caráter mais prosaico e, por vezes, até jornalístico, sem, no entanto, deixar de apresentar momentos em que o nível de inventividade alcança suas melhores composições iniciais. Sobressai-se, neste período, o livro Corpo (1984), em que Drummond, já com mais de 80 anos, pratica uma poesia sentimental sem as preocupações com as inovações formais que caracterizam o início de sua obra.
A ESTRÉIA EM LIVRO
Alguma Poesia é composto por poemas escritos entre 1924 (que se saiba) e 1930. Apresenta a produção inicial de Drummond, gerada em meio às acirradas disputas que seguiram a explosão nacional do Modernismo, após a Semana de Arte Moderna de 1922. Portanto, antes de ser uma obra inaugural do que se iria produzir a partir da década de 30, trata-se de um produto da fase dita heróica, combativa e programática do modernismo brasileiro.
Utilizando a linguagem coloquial do primeiro modernismo, os poemas do livro são escritos em versos livres: sem métrica regular. A rima só comparece quando usada ironicamente: "Mariquita, dá cá o pito / no teu pito está o infinito". No Poema de sete faces o poeta explicita a crítica irônica aos processos poéticos tradicionais:
Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração.
No poema Festa no brejo, Drummond retoma a crítica feita por Manuel Bandeira à poesia Parnasiana em seu célebre poema Os Sapos: "O sapo-tanoeiro, / Parnasiano aguado, / Diz: -- Meu cancioneiro / É bem martelado." O poeta mineiro transfere para seu Estado a batalha contra os "sapos" parnasianos:
O brejo vibra que nem caixa de guerra. Os sapos estão danados. (...) A saparia toda de Minas coaxa no brejo humilde. Hoje tem festa no brejo!
Alguns poemas revelam clara influência das vanguardas européias, como o Dadaísmo em Sinal de apito e Cota zero. Ou do espírito irônico e combativo de Oswald de Andrade, como em Anedota Búlgara, que tematiza o choque cultural através de uma irônica historieta, que em muito lembra o poema Erro de português, de Oswald: "Quando o português chegou / Debaixo duma bruta chuva / Vestiu o índio / Que pena! / Fosse uma manhã de sol / O índio tinha despido / O português".
A IRONIA E O DOM DE SURPREENDER.
A ironia perpassa todo o livro. O poeta gauche, deslocado, torto, evita o sentimentalismo barato ("Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque/ botam a gente comovido como o diabo"), mas continua se emocionando e comovendo o leitor em versos surpreendentes como "E eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson Crusoé." E segue demolindo esteriótipos. Em Papai Noel às avessas, apresenta um Noel que vai roubar o quarto das criancinhas, em Casamento do céu e do inferno, afirma sobre as mulheres que "Tirante Laura e talvez Beatriz, (as musas, respectivamente de Petrarca e Dante, os maiores expoentes do renascimento italiano) / o resto vai para o inferno". Em Fuga, critica o poeta de pendor clássico que sonha com a Europa e rejeita tudo o que é brasileiro; em Sociedade, a hipocrisia dos casais que se visitam.
Na primeira estrofe do poema Sentimental, o dom de surpreender de Drummond se torna ainda mais evidente:
Sentimental Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruçados na mesa todos contemplam esse romântico trabalho.
A palavra "macarrão" destrói a expectativa inicial, criada pelo título e pelo primeiro verso do poema. Esperar-se-ia que o eu lírico escrevesse com letras mais "poéticas". Ele, no entanto, o faz com as prosaicas letrinhas de macarrão, ao tomar uma sopa. Poderíamos dizer que, neste poema, Drummond inscreve o sentimento amoroso no convívio cotidiano. Durante uma prosaica refeição, o eu lírico sonha com a mulher amada, enquanto tudo ao seu redor contribui para a proibição deste espírito "sentimental".
AS LINHAS TEMÁTICAS.
Em 1962, Drummond publicou a sua Antologia Poética. Ao organizar o volume, procurou, segundo ele, "localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto." Agrupou, portanto, os seus poemas em diversas linhas temáticas, ou segundo as diferentes "matérias de poesia". Assim, dividiu a sua obra em nove grupos temáticos básicos, que têm guiado as considerações críticas sobre a sua poesia até hoje. Nove dos poemas de Alguma Poesia foram escolhidos para figurar na Antologia. No quadro abaixo, temos o título de cada seção, seguido pela explicação dada a cada uma pelo próprio Drummond e pelos poemas de Alguma Poesia nelas presentes:
1. Um eu todo retorcido: o indivíduo. Poema de sete faces.
2. Uma província: esta: a terra natal. Cidadezinha qualquer e Romaria.
3. A família que me dei: a família. Infância.
4. Cantar de amigos: amigos.
5. Na praça de convites: o choque social. Coração numeroso.
6. Amar-amaro: o conhecimento amoroso. Quadrilha.
7. Poesia contemplada: a própria poesia.
8. Uma, duas argolinhas: exercícios lúdicos. Sinal de apito e Política literária.
9. Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo: uma visão, ou tentativa de, da existência. No meio do caminho.
Poderíamos, correndo os riscos inerentes a qualquer classificação que envolva aspectos subjetivos, agrupar os demais 40 poemas do livro de acordo com essa tipologia. Alertando para o fato de que alguns dos poemas poderiam aparecer em mais de uma seção, teríamos 8 dos 9 grupos criados por Drummond presentes em Alguma Poesia:
1. O indivíduo: Poema de sete faces; Também já fui brasileiro; Moça e soldado.
2. A terra natal: Cidadezinha qualquer; Romaria; Lanterna mágica; Lagoa; O que fizerem do Natal; Igreja; Jardim da praça da liberdade.
3. A família: Infância; Família; Sesta.
4. O choque social: Coração numeroso; Europa, França e Bahia; A rua diferente; Poema do jornal; Nota social; Fuga; Papai Noel às avessas; O sobrevivente; Sociedade; Elegia do rei de Sião; Outubro 1930.
5. O conhecimento amoroso: Quadrilha; Casamento do céu e do inferno; Toada do amor; Cantiga de viúvo; Sentimental; Esperteza; Iniciação amorosa; Balada do amor através das idades; Cabaré mineiro; Quero me casar.
6. A própria poesia: Poema que aconteceu; Poesia; Festa no brejo; Explicação.
7. Exercícios lúdicos: Sinal de apito; Política literária; Construção; Anedota búlgara; Cota zero.
8. Uma visão da existência: No meio do caminho; Política; Sweet home; Música; Epigrama para Emílio Moura; Poema da purificação.
A única seção da Antologia Poética que não se apresenta em Alguma Poesia é o Cantar de amigos, composto por poemas dedicados a amigos reais do poeta, como Mário de Andrade e Jorge de Lima ou a "amizades" que se criam através da admiração artística, como as que o ligam a Federico Garcia Lorca e a Charlie Chaplin. No entanto, o livro como um todo é dedicado a "Mário de Andrade, meu amigo", e vários poemas específicos são dedicados a amigos particulares: Abgar Renault, Aníbal Machado, Manuel Bandeira, Wellington Brandão, Mário Casasanta, Ribeiro Couto, Gustavo Capanema, Afonso Arinos, Cyro dos Anjos, Pedro Nava, Martins de Almeida e Milton Campos. Um dos poemas traz essa dedicatória no próprio título: Epigrama para Emílio Moura.
A série Lanterna Mágica foi incluída na seção A Terra Natal por apresentar basicamente poemas sobre cidades de Minas Gerais. Mas contém também um texto sobre o Rio de Janeiro, para onde o poeta haveria de se transferir, e o irônico Bahia: É preciso fazer um poema sobre a Bahia... / Mas eu nunca fui lá.
Poderíamos acrescentar ainda diversas vertentes temáticas que perpassam todo o livro. Uma delas seria a da perplexidade do homem frente às mudanças da sociedade moderna. Em poemas como A rua diferente, O que fizeram do Natal e O Sobrevivente, essa temática aparece claramente, mas está disseminada, de maneira mais sutil, em vários textos.
Outra preocupação que reaparece em diversos textos é com as relações entre o Brasil e o estrangeiro. Em vários momentos o Brasil é comparado ao exterior, como fica evidente nos poemas Europa, França e Bahia e Fuga.
UM POEMA NO MEIO DA POLÊMICA.
Sem dúvida alguma, o mais polêmico e, por isso mesmo, célebre, dos poemas de Alguma Poesia é No meio do caminho. Foi elogiado já em 1924, em carta, por Mário de Andrade, que o considerou "formidável. É o mais forte exemplo que conheço, mais bem frisado, mais psicológico, de cansaço intelectual". Desde a sua primeira publicação - em julho de 1928, no número 3 da Revista de Antropofagia, dirigida por Oswald de Andrade - o poema serviu como um divisor de águas. Virou o grande pomo da discórdia entre os tradicionalistas e os defensores da estética modernista.
O poema se estrutura através da repetição ad nauseaum do verso no meio do caminho tinha um pedra, que procura reproduzir o cansaço detectado por Mário de Andrade, a monotonia e o eterno enfrentamento de obstáculos (pedra) na vida (caminho) de qualquer um de nós. As constantes inversões sintáticas - tinha uma pedra no meio do caminho - além de colocarem a palavra pedra no meio do caminho da leitura, introduzem a idéia de enclausuramento, de impossibilidade de fuga dos problemas: não importa a direção ou o sentido que se tome, a pedra sempre está no meio do caminho.
O título do poema de Drummmond remete ao primeiro verso de uma obra-prima da literatura universal, a Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321):
INFERNO Canto I Tradução de Augusto de Campos (fragmentos) No meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura, solitário, sem sol e sem saída. (…) Não me recordo ao certo como entrei, tomado de uma sonolência estranha, quando a vera vereda abandonei. Sei que cheguei ao pé de uma montanha, lá onde aquele vale se extinguia, que me deixara em solidão tamanha, e vi que o ombro do monte aparecia vestido já dos raios do planeta que a toda gente pela estrada guia.
Poderíamos dizer que a "pedra" de Drummmond já está presente na obra-prima de Dante, pois o caminhante da Divina Comédia encontra, "no meio do caminho", uma montanha que o impede de prosseguir, uma "pedra".
Outro poeta brasileiro, símbolo da poesia tradicionalista, anterior a Drummmond, já havia feito um poema inspirado no mesmo verso de Dante. Vejamos a sua primeira estrofe:
Nel Mezzo del Camin... (Olavo Bilac) Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha...
O poema de Olavo Bilac, apesar de todas as diferenças, já apresenta procedimentos semelhantes àqueles que Drummmond irá radicalizar. As inversões sintáticas: Vinhas fatigada / E triste, e triste e fatigado eu vinha. As repetições: Tinhas a alma de sonhos povoada, / E a alma de sonhos povoada eu tinha.
Mas essas semelhanças passaram despercebidas. Os defensores do Parnasianismo de Olavo Bilac preferiram ver na simplicidade modernista do poema de Drummond um bom exemplo de loucura e falta de imaginação ou habilidade poética. O crítico Gondin da Fonseca publica, entre outros, um artigo no jornal Correio da Manhã (Rio, 26-8-1938) sugestivamente intitulado Contra-a-mão. Os nossos atuais gênios poéticos, em que destila todo o seu ódio contra a pedra drummoniana:
"Hoje não se rima. Um cabra vai pela rua, tropeça, por exemplo, numa casca de banana, papagueia a coisa umas quatro ou cinco vezes e pronto! Está feito um poema:
Eu tropecei agora numa casca de banana. Numa casca de banana! Numa casca de banana eu tropecei agora, Caí para trás desamparadamente, E rasguei os fundilhos das calças! Numa casca de banana eu tropecei agora. Numa casca de banana! Eu tropecei agora numa casca de banana!"
Em meio a tantos ataques, defesas e comentários em geral, o poema foi se tornando a mais conhecida e citada obra poética do modernismo brasileiro. O próprio Drummond viria a reunir as referências ao poema no singularíssimo volume Uma pedra no meio do caminho - biografia de um poema, publicado pela Editora do Autor em 1967 e, infelizmente, muito difícil de se encontrar hoje em dia.
AS RECRIAÇÕES.
Outros poemas do livro tornaram-se muito populares e serviram de mote para diversas recriações e referências intertextuais. Quadrilha, com sua apresentação bem humorada das interrelações amorosas dos adolescentes, além de ser adaptado, já na década de 80, para uma campanha de esclarecimento sobre o perigo da AIDS, serviu de inspiração para João Cabral de Melo Neto na composição de seu poema dramático Os Três Mal-Amados (1942):
JOÃO:
Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento?
RAIMUNDO:
Maria era a praia que eu freqüentava certas manhãs. Meus gestos indispensáveis que se cumpriam a um ar tão absolutamente livre que ele mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.
JOAQUIM:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
Note-se como o autor de Morte e vida severina reproduz a situação de cada um dos personagens masculinos do poema de Drummond. João, que amava Teresa, foi para os Estados Unidos, afastou-se. Raimundo, que amava Maria, morreu de desastre. Joaquim, que amava Lili, suicidou-se. João Cabral reproduz o discurso do suicida que foi corroído pelo amor.
Outra recriação de Quadrilha foi feita por Chico Buarque de Holanda em sua canção Flor da idade (1975). Descrevendo o desabrochar da sexualidade na adolescência, o compositor reproduz a estrura de composição do poema de Alguma Poesia:
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha
Também a estrofe inicial do Poema de sete faces (Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.) tem inspirado poetas contemporâneos:
Let's play that (Torquato Neto) quando eu nasci um anjo louco muito louco veio ler a minha mão não era um anjo barroco era um anjo muito louco, torto com asas de avião eis que esse anjo me disse apertando a minha mão com um sorriso entre dentes vai bicho desafinar o coro dos contentes vai bicho desafinar o coro dos contentes let's play that Até o fim (Chico Buarque de Holanda)
Quando nasci veio um anjo safado O chato dum querubim E decretou que eu tava predestinado A ser errado assim Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fim (...)
Além de continuarem a provocar os leitores de hoje, os poemas de Alguma Poesia seguem servindo de inspiração a alguns dos mais destacados poetas contemporâneos.
BIOGRAFIA: QUASE UM SÉCULO DE POESIA
Na pequena Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, nasce Carlos Drummond de Andrade, filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e de D. Julieta Augusta Drummond de Andrade, em 31 de outubro de 1902.
Passa a infância em Itabira. Com 14 anos, estuda como interno no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte - onde conhece Gustavo Capanema e Afonso Arinos de Melo Franco - e, depois, no Colégio Anchieta da Companhia de Jesus em Nova Friburgo (RJ), de onde é expulso por "insubordinação mental". Enquanto estudava em Nova Friburgo, seu irmão Altivo publica seu poema em prosa Onda no único número do jornalzinho Maio, em Itabira.
De volta a Minas Gerais, muda-se com a família para Belo Horizonte. Freqüenta o Café Estrela e a Livraria Alves, onde conhece Milton Campos, Abgar Renault, Emílio Moura, Alberto Campos, Mário Casassanta, João Alphonsus, Batista Santiago, Aníbal Machado, Pedro Nava, Gabriel Passos, Heitor de Sousa e João Pinheiro Filho. Nessa época, publica seus primeiros trabalhos no Diário de Minas e ganha o concurso Novela Mineira pelo conto Joaquim do Telhado. As revistas Para todos e Ilustração Brasileira, do Rio de Janeiro, publicam alguns de seus poemas. Em 1923, matricula-se na Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte.
Escreve a Manuel Bandeira e entra em contato com o grupo modernista de São Paulo, que passa, em viagem, por Belo Horizonte, em 1924. Conhece Blaise Cendrars, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Mário de Andrade, de quem se tornará amigo e manterá correspondência até poucos dias antes da morte de Mário.
Mais atraído pelas discussões sobre a arte e o país do que pelas aulas de química, forma-se farmacêutico em 1925, mas nunca exerce a profissão. Ainda neste ano, casa-se com Dolores Dutra de Morais e funda, junto com Emílio Moura e Gregoriano Canedo, A Revista, órgão modernista do qual saem 3 números. Depois de lecionar Geografia e Português no Ginásio Sul-Americano em Itabira, volta a Belo Horizonte para ser redator do Diário de Minas.
Em 1928, nasce Maria Julieta, a filha única que será a grande companheira do poeta. Seu poema No meio do caminho é publicado pela Revista de Antropafagia, de São Paulo. O poema causa forte impacto e se torna um dos maiores escândalos literários do Brasil. O poeta publicará, 39 anos depois, Uma pedra no meio do caminho - Biografia de um poema, coletânea de críticas e matérias resultantes do poema ao longo dos anos. Neste mesmo ano, vai trabalhar na Secretaria de Educação, na redação da Revista do Ensino.
Em 1929, deixa o Diário de Minas para trabalhar no Minas Gerais, órgão oficial do estado, sob a direção de Abílio Machado e José Maria Alkmim.
Em contraste com a pacata vida de funcionário público, a publicação do seu primeiro livro, em 1930 - Alguma Poesia - gera, com a mesma intensidade, ataques e elogios da crítica e do público. A edição de 500 exemplares, sob o selo imaginário de Edições Pindorama, criado por Eduardo Frieiro, é facilitada pela Imprensa Oficial do Estado, o que não altera em nada o caráter de ruptura e inovação da obra.
Em 1934, volta a ser redator dos jornais Minas Gerais, Estado de Minas e Diário da Tarde, simultaneamente, e publica Brejo das Almas em edição de 200 exemplares. Gustavo Capanema é nomeado Ministro da Educação e Saúde Pública por Getúlio Vargas neste mesmo ano, e Drummond é convidado para ser o seu chefe de gabinete.
Muda-se com a família para o Rio de Janeiro, então capital da República, onde suas atividades intelectuais se ampliam e ganham impulso.
Colabora, inicialmente, na Revista Acadêmica e, em seguida, no Correio da Manhã, Folha Carioca, A Manhã, Leitura, A Tribuna Popular, Política e Letras e na revista Euclydes. Em 1940, distribui entre amigos e escritores os 150 exemplares da edição de Sentimento do mundo. Em 1942, José Olympio é o primeiro editor a se interessar pela sua obra e publica Poesias - José. Em 1944, por iniciativa de Álvaro Lins, Drummond publica seu primeiro livro de prosa Confissões de Minas.
Em 1945, publica A Rosa do Povo pela José Olympio e a novela O Gerente. Desliga-se do gabinete de Gustavo Capanema e aceita o convite de Luís Carlos Prestes para integrar a diretoria do diário do Partido Comunista, A Tribuna Popular. Meses depois, insatisfeito com a orientação do jornal, afasta-se e vai trabalhar na Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a convite do amigo Rodrigo M. F. Andrade. Mais tarde se tornará chefe da Seção de História, na Divisão de Estudos e Tombamento.
As atividades do poeta continuam bastante diversificadas. Ainda em 45, volta a escrever no Minas Gerais e participa da tentativa frustrada de reformulação do DIP, Departamento Nacional de Informações. Também nessa época Drummond, cuja vida pessoal foi sempre marcada pela discrição, conhece a jovem Ligia Fernandes, funcionária do DPHAN, a quem dedicaria, ao longo da sua trajetória poética, alguns de seus mais belos poemas.
Em 46, ganha o Prêmio pelo Conjunto de Obra, da Sociedade Felipe d'Oliveira. Muitos outros prêmios foram acrescentados no decorrer de sua vida.
Às atividades de escritor e jornalista, Drummond somou a de tradutor de textos literários. Traduziu, entre outros, Les liaisons dangereuses, de Choderlos de Laclos (1947); Les paysans, de Balzac (1954); Albertine Disparue, de Proust (1956). Em 48, Drummond publica Poesia até agora. O Poema de Itabira, composto por Villa-Lobos sobre seu texto Viagem na família, é executado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro à mesma hora em que o poeta acompanha o enterro de sua mãe, em Itabira.
Maria Julieta casa-se, em 49, com o escritor e advogado argentino Manuel Graña Etcheverry e muda-se para Buenos Aires. Em 1950 - quando nasce o seu primeiro neto, Carlos Manuel - Drummond viaja pela primeira vez para fora do país. Durante a sua vida, as poucas viagens internacionais sempre tiveram o mesmo destino - a Argentina, e razão - a saudade.
Se Drummond não viaja muito, o mesmo não acontece com as suas obras. Em 51, em Madri, é publicado o volume Poesias. Em Buenos Aires, em 53, aparece Dos poemas. A partir da década de 60, suas obras estariam em diversos países, como Alemanha, Estados Unidos, França, Portugal, Suécia e outros.
Em 51, Drummond estréia como contista com a publicação de Contos de aprendiz. No mesmo ano, publica Claro enigma e A mesa. Em 52, Passeios na Ilha e Viola de Bolso. Em 54, Fazendeiro do Ar & Poesia até agora; Viola de Bolso novamente encordoada aparece em 55; 50 Poemas escolhidos pelo autor, em 56 e Poemas, em 59.
A intensa atividade do poeta e a revelação do contista não impedem o autor de escrever as crônicas que, durante quatro décadas, encantaram os leitores de alguns jornais. Em 1952, ele publica o volume de crônicas Passeios na ilha. O livro seguinte, Fala, amendoeira, de 1957, reúne as crônicas publicadas na coluna Imagens, do diário carioca Correio da Manhã, onde permaneceu até 1969, quando se transferiu para o Jornal do Brasil.
Com a aposentadoria, em 62, Drummond ganha mais tempo para suas atividades intelectuais. Neste ano, publica Antologia Poética, A bolsa & a vida e Lição de coisas, premiado em 63. Colabora no programa Vozes da Cidade, criado por Murilo Miranda, na Rádio Roquete Pinto e inicia o programa Cadeira de Balanço, na Rádio Ministério da Educação, título de um de seus livros de crônicas que seria editado em 1966.
Com o reconhecimento do público e da crítica, em 1964 a Editora Aguilar publica toda a sua produção em Obra completa. Cinco anos depois, seria a vez de Reunião, abrangendo vários livros do poeta. Em 65, publica, em colaboração com Manuel Bandeira, Rio de Janeiro em prosa & verso.
Nos anos 70 e 80, Drummond recebeu muitos prêmios e continuou a publicar poesia, crônicas e contos, além de colaborar em jornais. Em 1972, jornais do Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre publicam suplementos comemorativos do 70º aniversário do poeta. Em 77, grava 42 poemas em 2 long plays, lançados pela Polygram. Quando completa 80 anos, é homenageado através de exposições, entrevistas e reportagens.
Em 83, organiza a edição de Nova reunião - 19 livros de poesia, sua última publicação pela Editora José Olympio. No entanto, recusa-se a receber o Prêmio Juca Pato, alegando estar física e emocionalmente frágil.
Em 1984, despede-se da Editora José Olympio e assina contrato com a Editora Record, que publica sua obra até hoje. Também se despede da carreira de cronista, com a crônica Ciao, no Jornal do Brasil, depois de 64 anos de trabalho jornalístico. Em 1986, sofre um infarto e é internado durante 12 dias.
Em 31 de janeiro de 87, escreve seu último poema, Elegia a um tucano morto que passa a integrar Farewell, último livro organizado pelo poeta. É homenageado pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira, com o samba-enredo No reino das palavras, que vence o Carnaval 87. Em julho, debilitado, concede uma última entrevista, em tom amargurado - Maria Julieta está com câncer e falece no dia 5 de agosto, depois de 2 meses de internação. "E assim vai-se indo a família Drummond de Andrade" - comenta o poeta.
Seu estado de saúde piora e apenas 12 dias depois da morte da filha, em 17 de agosto, morre vítima de insuficiência cardíaco-respiratória. É enterrado no mesmo túmulo que a filha, no Cemitério São João Batista do Rio de Janeiro.
Deixa várias obras inéditas: Farewell; O avesso das coisas (aforismos), Moça deitada na grama, O amor natural (poemas eróticos), Viola de bolso III (Poesia errante), hoje publicados pela Record; Arte em exposição (versos sobre obras de arte); além de crônicas, dedicatórias em verso coletadas pelo autor, correspondência e um texto para um espetáculo musical, ainda sem título.
O último verso do seu último poema comenta "a inutilidade de nascer", que a imensa obra que nos deixou, começando por Alguma Poesia, felizmente desmente.

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