quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

TEM +... O ataque do ''vírus da irrelevância'' - ARNALDO JABOR

sexta-feira, 3 de junho de 2011


O ataque do ''vírus da irrelevância'' - ARNALDO JABOR

Um amigo meu, muito culto, tem um filho muito "conectado" na internet. E o menino disse a ele: "Pai, você sabe tudo que já aconteceu, mas não sabe nada do que está acontecendo". O pai, como todos nós, embatucou. A mutação cultural dos últimos anos foi tão forte, a turbulência no mundo pós-industrial dissolveu tantas certezas, que caímos num vácuo de rotas. Não só no Brasil, mas no mundo inteiro, artistas e pensadores vivem perplexos - não sabem o que filmar, escrever, formular. Em geral, recorrem às atitudes mais comuns nas turbulências: desqualificar os fatos novos e reinventar um "absoluto" qualquer. Sinto em mim mesmo como é difícil criar sem esperança ou finalidade. Como era gostoso nosso modernismo, os cinemas novos, os movimentos literários, as cozinhas ideológicas. Os criadores se sentiam demiurgos falando para muitos. Agora, na falta das "grandes narrativas" do passado, estamos a idealizar irrelevâncias, como se ali estivessem pistas para novas "verdades" a desvelar - a aura deslizou da obra para o próprio autor. Hoje, as palavras que eram nosso muro de arrimo foram esvaziadas de sentido e ficamos à deriva. Por exemplo, "futuro". Que quer dizer? Antes, era visto como um lugar a que chegaríamos, um lugar no espaço-tempo, solucionado, harmônico, que nos redimiria da angústia da falta de "Sentido". Agora, no lugar de "futuro", temos um presente incessante, sem ponto de chegada. Pela influência insopitável do avanço tecnológico da informação, turbinado pelo mercado global, foram se afastando do grande público as criações artísticas e literárias, as ideias filosóficas, os valores. Em suma, toda aquela dimensão espiritual chamada antigamente de cultura que, ainda que confinada nas elites, transbordava sobre o conjunto da sociedade e nela influía, dando um sentido à vida e uma razão de ser para a existência. Mais ou menos isso Vargas Llosa escreveu outro dia no El País, num ensaio chamado A Civilização do Espetáculo. A verdade é que passamos da ilusão para o desencanto. Temos hoje uma "horrenda liberdade" sem fins, porque (vamos combinar) os criadores querem mesmo é ser eternos, inesquecíveis, mesmo os mais radicais "instaladores" contemporâneos. Nunca tivemos tantos criadores, tanta produção cultural enchendo nossos olhos e ouvidos com uma euforia medíocre, mas autêntica. Há uma grande vitalidade neste cafajestismo poético, enchendo a web de grafites delirantes. Não sei em que isso vai dar, mas o tal "futuro" chegou; grosso, mas chegou. Talvez este excesso de "irrelevâncias" esteja produzindo um acervo de conceitos "relevantes", ainda despercebidos. Podemos nos dedicar ao micro, ao parcial, podemos nos arriscar ao erro com mais alegria; mas, isso não pode justificar um desprezo pela excelência. E o pior é que as tentativas de "grande arte" são vistas com desconfiança, como atitudes conservadoras, diante da cachoeira de produções que navegam no ar. Isso me lembra o tempo em que achávamos que o "fluxo da consciência", "the stream of consciousness" ou até o discurso psicótico encerravam uma sabedoria insuspeitada. Será que houve a morte da "importância"? Ou ela seria justamente esta explosão de conteúdos e autores? O "importante" seria agora o quantitativo? Não sei; mas, se tudo é "importante", nada o é. A importância de uma obra reside no grau de decifração da vida de seu tempo e para onde ela aponta, mesmo no túnel sem luz. Se olharmos as obras-primas de, digamos, Jan Van Eyck, o gênio holandês, vemos ali todo o espírito da Idade Média, revelada nos detalhes mais banais, mesmo nas encomendas de príncipes ou cardeais. Escrevo estas coisas porque meu artigo de hoje é a propósito de um "importante" ensaio de Alcyr Pécora de 23 de abril, no Prosa e Verso de O Globo, sobre a crise de nossa literatura. Alcyr acha que fomos atacados por "um vírus de irrelevância". Ele escreveu: "É como se o presente se absolutizasse e não mais admitisse um legado cultural como patamar exigente de rigor para sua produção(...) é como se alguma coisa se introduzisse na cultura e a tornasse inofensiva, doméstica. (...) A ação já se apresenta como narrativa, como ocorre nos reality shows, em que as pessoas, antes de agir, representam ou narram a ação que lhes cabe, como se todo mundo fosse interessante o bastante para ser visto/lido (...) Não basta haver conhecimento; tem de se produzir o que não é e o que não há (...) Na arte, não há nenhum valor simbólico que substitua o objeto (...) não há atitude ou opção ideológica que permita saltar sobre os mecanismos da composição (...) Perdida a noção de herança cultural, perde-se a de crítica, de autocrítica, e naturalmente a de criação (...) Escrever literatura é um gesto simbólico que traz uma exigência: a de ser de qualidade (...) A recusa de muitos escritores de sequer considerar o impasse atual tem qualquer coisa de cegueira deliberada (...) Atitude resolve problemas do roqueiro, mas não resolve a questão da literatura". No entanto, as questões levantadas pelo professor não tiveram repercussão teórica maior, além de reclamações mal-humoradas de que ele seria um crítico "estraga-prazer, um intrometido". Contudo, é preciso que esses tópicos sejam discutidos, com ou sem polêmicas, pois, na tal conversa do pai erudito com o filho conectado, a resposta do pai poderia ser: "Você acha que sabe tudo que está acontecendo e nada sabe sobre o que já aconteceu". Por isso, dou uma pequena contribuição ao assunto: tenho um filho de 11 anos, João Pedro. Eu, zeloso pai, botei o Quarteto de Cordas op. 133 de Beethoven para que ele ouvisse um momento máximo da história da música. Ouviu tudo atentamente enquanto, no ritmo exato do quarteto, jogava um game, o Hell Kid no iPad.

quinta-feira, 2 de junho de 2011


O ônibus é a praia do povo - Anna Veronica Mautner

Há alguns anos, eu me pergunto o porquê dessa onda de usar roupas apertadas, seguramente de numeração menor do que o corpo que vestem. A moda "pegou" especialmente entre as mulheres das classes menos favorecidas, ditas trabalhadoras. Conforme se sobe na escala social, a numeração vai aumentando. Mas isso seria assunto de sociólogo. Quer confirmar? Basta olhar em volta, no metrô ou à espera dele, no ônibus ou à espera dele, para encontrar mulheres que não se inibem em mostrar os recortes de seu corpo e até das partes... como as chamaremos? Depois, é só olhar a roupa dos ricos, estampada nas revistas, na televisão: as supostas formadoras de opinião se vestem diferente. Dizer que as roupas baratas não são feitas em números grandes não é verdade -ou, pelo menos, não justifica. Mesmo porque as mulheres magras, do povo, também se esmeram em usar roupas agarradas. Não é questão de tamanho nem de preço. Creio que é de classe social. O confeccionista faz o que tem mais saída. Não estou discutindo se cavalo curto, entrando pelas reentrâncias, é bonito ou feio, se agrada ou não agrada, se é sexy ou não. Uma coisa é certa: cavalo curto, com camiseta curta e apertada, apela para o erótico e deve atender a algum apelo de diferenciação de gênero. Atribuo seu sucesso a Eros. Não digo que as classes A, AA ou AAA não usem cós baixo, deixando entrever as roupas íntimas, mas a ocorrência é menor e, em geral, restrita a adolescentes que arriscam. Com o aumento da idade, a exibição é amenizada. O que me intriga é o seguinte: dizem que as mulheres da classe trabalhadora almejam ter acesso ao universo das "madames"; mas, no que se refere ao cavalo curto e ao tamanho das roupas, observamos uma completa autonomia entre as duas classes de mulheres. Quem me lê pode supor que estou criticando, mas não é nada disso. Escrevo para expressar a minha admiração em relação à saúde e ao orgulho com que certas mulheres menos complicadas e sofisticadas assumem seu lado erótico. Justamente pensando nisso, ocorre-me uma idéia. Espremida entre o trabalho e todas as tarefas caseiras que lhe cabem, a mulher trabalhadora, a mulher operária, encontra no espaço da locomoção pública o lugar onde "vê e é vista". Aí ela se compara e pode viver sua sensualidade e seu erotismo. As colunas sociais e de fofocas estão repletas de endereços onde as mulheres que não tomam condução, pois têm automóvel à sua disposição, vão para "ver e serem vistas". Os clubes esportivos e sociais, os teatros, os restaurantes, o campo e a praia constituem o espaço da paquera dos que têm acesso a esses lugares. Na falta de tempo para freqüentar praia, clube e shopping, as mulheres da classe trabalhadora encontraram uma saída criativa. Não sendo vergonha nenhuma ser mulher e querer agradar, usam o espaço público da urbe para paquerar -ele se presta muito bem a isso. É verdade que são horas e horas de possível desconforto, mas "vendo e sendo vistas". E, para tanto, a roupa que mostra sem desvelar é o ideal, já que o biquíni na cidade é impossível. Parabéns ao instinto de vida!

quarta-feira, 1 de junho de 2011


Estragos e soluções - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Não se sabe qual é a, digamos, inclinação política do pênis. Ele é anatomicamente de centro, como todos os políticos na Itália, que se identificam como de “centrosinistra” ou de “centrodestra”, nunca de sinistra ou de destra. O pênis é centrão assumido, mas de que tendência ninguém sabe. Ele ora pende para um lado, ora para outro. Além de ser obviamente um falocrata, que se pudesse falar definiria sua posição como “sou mais eu”, sua ideologia é desconhecida. Raramente é a do seu portador, em relação ao qual mantém uma evidente independência de pensamento e ação. Há esquerdistas com pênis fascistas, conservadores com pênis sempre atrás de novas experiências sociais, liberais com pênis decididamente intervencionistas. O pênis é, por assim dizer, um livre atirador. Pênis não tem dono. Ou, dito de outra maneira, não costuma levar em consideração a conveniência dos seus donos. E como a comunicação entre o homem e o seu pênis é precária, o pênis não ouve apelos à razão e não adianta pedir para ele ter uma consciência histórica, o resultado é o estrago que vem causando a carreiras e reputações através dos tempos. Sem querer nem saber. Veja-se o caso recente do Strauss-Kahn e do seu pênis predador. Deve ter havido uma tentativa de diálogo entre Strauss-Kahn e seu pênis antes do ataque à camareira. Não é impossível que o ex-provável candidato a presidente do seu país tenha até invocado o futuro da Europa e do mundo para tentar deter o pênis. “Arretez pour la France!”. O pênis não teria dado ouvidos. Espera um pouquinho, esqueça esta frase. O pênis não teria ligado. E fora adiante, sem nenhum prurido patriótico. E SK está politicamente liquidado. Mais uma vítima do próprio pênis. O que fazer para que coisas assim não se repitam? A primeira solução é radical: a castração como condição para o serviço público masculino e carreiras políticas. Para o pênis aprender. A segunda solução seria a gradual substituição de homens por mulheres no poder, em todo o mundo. Uma solução que já está em curso. Os homens manteriam seu pênis mas sem a possibilidade de causar mais estragos. E pronto.

E a medicina, hein? - ANTONIO PRATA

TÔ PREOCUPADO: não sei mais bater papinho. Por "papinho" entendo essa conversa amena que puxamos com colegas de trabalho diante da máquina de café, essas palavras inócuas que trocamos com conhecidos em festas e lançamentos de livros, na fila do cinema ou no corredor do supermercado. Admito, sem falsa modéstia, que já fui um ás do papinho. Até outro dia, era capaz de fazer hábeis trocadilhos com o título do filme em cartaz ou do livro autografado; descolava, rapidamente, uma piada com cebolas, sabão em pó ou qualquer que fosse o produto na gôndola do mercado; numa roda, ia de Leonardo da Vinci a Leandro e Leonardo, sem jamais ficar chato ou deixar a peteca cair. De uns tempos pra cá, contudo, algo mudou: paro diante de um conhecido, digo "oi, e aí, tudo certo?", e, quando o papinho deveria brotar, as palavras somem da minha boca, como se sugadas por um aspirador de pó. Aconteceu pela primeira vez faz uns três meses. Entrei num restaurante e dei de cara com um escritor, a quem conheço por alto, mas cuja obra muito admiro. Parei diante do sujeito, o cumprimentei e, quando abri a boca para dizer qualquer bobagem, senti o vazio fungando em meu cangote. O escritor me olhava, esperando alguma palavra -afinal, quem chega é o responsável pela introdução do papinho-, mas minha mente era uma folha em branco. Assustado, agindo por reflexo, tomei uma atitude que ainda não consigo compreender, mesmo já passadas tantas semanas. Dei um soquinho no peito do literato e disse: "Bom apetite!". Que tipo de ser humano, em sã consciência, dá um soquinho no peito de outro e diz "bom apetite!"?! O Ronald McDonald talvez aja assim com uma criança, numa propaganda do McDia Feliz, mas não uma pessoa de verdade -muito menos conversando com um grande escritor. Arrasado, sentei numa mesa escondida, atrás de uma coluna, e fui roer o meu remorso. Mal sabia eu que era só o começo de minha paralisia social. Dias depois, numa festa, encontrei um ex-colega da escola, hoje oftalmologista. Nos cumprimentamos, um segundo se passou, dois, três e, então, do fundo de minha estupidez, perguntei: "E a medicina, hein?". Céus, como ele poderia responder a tamanha cretinice? Faria um discurso começando com Hipócrates e terminando na última edição da "Scientific American"? Tentaria, quem sabe, uma abordagem filosófica, dizendo que a medicina é a mais inútil de todas as estratégias humanas para driblar a morte? Meu ex-colega, contudo, resolveu se vingar na mesma chave, disse apenas "vai indo, vai indo... E você, escrevendo muito?". De lá pra cá, por medo de cair novamente num desses bueiros sociais, estou praticando uma espécie de chavão preventivo, que consiste em dar oi e engatar imediatamente num papinho sobre o tempo. Sei que é uma estratégia burra, quase como matar-se por medo da morte, mas antes abrigar-me no morno lugar comum da meteorologia do que, debatendo-me para escapar do abismo do silêncio, terminar dando soquinhos no peito de alguém ou perguntando por aí: "E a medicina, hein?", "E o direito cível, hein?", "E a mecânica dos fluidos, hein?". Deus me livre.

segunda-feira, 30 de maio de 2011


Uns braços! - CARLOS HEITOR CONY


Já contei a entrevista que fiz com Francisco Mignone por ocasião de seus 80 anos. Como qualquer jornalista imbecil, perguntei-lhe sobre seu compositor preferido ao longo de tão longa vida. Com aquele jeito malandro que ele tinha -e que o tornava tão simpático-, o maestro disse que foi mudando com o tempo. Aos 30 anos, quando lhe faziam a mesma pergunta, ele respondia que gostava de Beethoven. Aos 50, a resposta era outra: Bach. Mas, aos 60, quando nada mais devia a ninguém, respondia com a verdade que escondera durante tanto tempo: Puccini. Ao iniciar a carreira de compositor, ele se sentiria constrangido em confessar sua preferência por um autor de ópera italiana. Roncava os grandes nomes que fizeram a glória musical daquele miolo da Europa Central. "Mas perdi a vergonha", disse ele. Comigo aconteceu coisa parecida em relação a Machado de Assis. Aos 30 anos, confessava meu amor por "Dom Casmurro". Aos 40, fixei-me em "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Aos 50, assumi definitivamente "Quincas Borba", e fiquei com ele até hoje. Quem sabe o bem ou o mal que se esconde nas preferências que vão mudando com o tempo? Pulando da música e da literatura para a mulher (não parecem, mas têm tudo em comum), conheço um sujeito que já foi vidrado nas pernas de Cid Charisse, nos olhos de Lyz Taylor, nos seios monumentais de Sophia Loren. Só recentemente descobriu que a atração maior de seu desejo eram os braços. Não sei se ele andou lendo o conto de Machado de Assis. Outro dia, encontrei-o bestificado no meio da rua. Perguntei o que havia. Ele parecia encantado, fora do mundo. Respondeu num gemido de luxúria: "Vi uns braços!". E mais não disse nem foi preciso.

Aceitam tudo - Sírio Possenti

De vez em quando, alguém diz que lingüistas "aceitam" tudo (isto é, que acham certa qualquer construção). Um comentário semelhante foi postado na semana passada. Achei que seria uma boa oportunidade para tentar esclarecer de novo o que fazem os linguistas. Mas a razão para tentar ser claro não tem mais a ver apenas com aquele comentário. Surgiu uma celeuma causada por notas, comentários, entrevistas etc. a propósito de um livro de português que o MEC aprovou e que ensinaria que é certo dizer Os livro. Perguntado no espaço dos comentários, quando fiquei sabendo da questão, disse que não acreditava na matéria do IG, primeira fonte do debate. Depois tive acesso à indigitada página, no mesmo IG, e constatei que todos os que a leram a leram errado. Mas aposto que muitos a comentaram sem ler. Vou tratar do tal "aceitam tudo", que vale também para o caso do livro. Primeiro: duvido que alguém encontre esta afirmação em qualquer texto de linguística. É uma avaliação simplificada, na verdade, um simulacro, da posição dos linguistas em relação a um dos tópicos de seus estudos - a questão da variação ou da diversidade interna de qualquer língua. Vale a pena insistir: de qualquer língua. Segundo: "aceitar" é um termo completamente sem sentido quando se trata de pesquisa. Imaginem o ridículo que seria perguntar a um químico se ele aceita que o oxigênio queime, a um físico se aceita a gravitação ou a fissão, a um ornitólogo se ele aceita que um tucano tenha bico tão desproporcional, a um botânico se ele aceita o cheiro da jaca, ou mesmo a um linguista se ele aceita que o inglês não tenha gênero nem subjuntivo e que o latim não tivesse artigo definido. Não só não se pergunta se eles "aceitam", como também não se pergunta se isso tudo está certo. Como se sabe, houve época em que dizer que a Terra gira ao redor do sol dava fogueira. Semmelveis foi escorraçado pelos médicos que mandavam em Viena porque disse que todos deveriam lavar as mãos antes de certos procedimentos (por exemplo, quem viesse de uma autópsia e fosse verificar o grau de dilatação de uma parturiente). Não faltou quem dissesse "quem é ele para mandar a gente lavar as mãos?" Ou seja: não se trata de aceitar ou de não aceitar nem de achar ou de não achar correto que as pessoas digam os livro. Acabo de sair de uma fila de supermercado e ouvi duas lata, dez real, três quilo a dar com pau. Eu deveria mandar esses consumidores calar a boca? Ora! Estávamos num caixa de supermercado, todos de bermuda e chinelo! Não era um congresso científico, nem um julgamento do Supremo! Um linguista simplesmente "anota" os dados e tenta encontrar uma regra, isto é, uma regularidade, uma lei (não uma ordem, um mandato). O caso é manjado: nesta variedade do português, só há marca de plural no elemento que precede o nome - artigo ou numeral (os livro, duas lata, dez real, três quilo). Se houver mais de dois elementos, a complexidade pode ser maior (meus dez livro, os meus livro verde etc.). O nome permanece invariável. O linguista isso, constata isso. Não só na fila do supermercado, mas também em documentos da Torre do Tombo anteriores a Camões. Portanto, mesmo na língua escrita dos sábios de antanho. O linguista também constata the books no inglês, isto é, que não há marca de plural no artigo, só no nome, como se o inglês fosse uma espécie de avesso do português informal ou popular. O linguista aceita isso? Ora, ele não tem alternativa! É um dado, é um fato, como a combustão, a gravitação, o bico do tucano ou as marés. O linguista diz que a escola deve ensinar formas como os livro? Esse é outro departamento, ao qual volto logo. Faço uma digressão para dar um exemplo de regra, porque sei que é um conceito problemático. Se dizemos "as cargas", a primeira sílaba desta sequência é "as". O "s" final é surdo (as cordas vocais não vibram para produzir o "s"). Se dizemos "as gatas", a primeira sílaba é a "mesma", mas nós pronunciamos "az" - com as cordas vocais vibrando para produzir o "z". Por que dizemos um "z" neste caso? Porque a primeira consoante de "gatas" é sonora, e, por isso, a consoante que a antecede também se sonoriza. Não acredita? Vá a um laboratório e faça um teste. Ou, o que é mais barato, ponha os dedos na sua garganta, diga "as gatas" e perceberá a vibração. Tem mais: se dizemos "as asas", não só dizemos um "z" no final de "as", como também reordenamos as sílabas: dizemos as.ga.tas e as.ca.sas, mas dizemos a.sa.sas ("as" se dividiu, porque o "a" da palavra seguinte puxou o "s/z" para si). Dividimos "asas" em "a.sas", mas dividimos "as asas" em a.sa.sas. Volto ao tema do linguista que aceitaria tudo! Para quem só teve aula de certo / errado e acha que isso é tudo, especialmente se não tiver nenhuma formação histórica que lhe permitiria saber que o certo de agora pode ter sido o errado de antes, pode ser difícil entender que o trabalho do linguista é completamente diferente do trabalho do professor de português. Não "aceitar" construções como as acima mencionadas ou mesmo algumas mais "chocantes" é, para um linguista, o que seria para um botânico não "aceitar" uma gramínea. O que não significa que o botânico paste. Proponho o seguinte experimento mental: suponha que um descendente seu nasça no ano 2500. Suponha que o português culto de então inclua formas como "A casa que eu moro nela mais os dois armário vale 300 cabral" (acho que não será o caso, mas é só um experimento). Seu descendente nunca saberá que fala uma língua errada. Saberá, talvez (se estudar mais do que você), que um ancestral dele falava formas arcaicas do português, como 300 cabrais. Outro tema: o linguista diz que a escola deve ensinar a dizer Os livro? Não. Nenhum linguista propõe isso em lugar nenhum (desafio os que têm opinião contrária a fornecer uma referência). Aliás, isso não foi dito no tal livro, embora todos os comentaristas digam que leram isso. O linguista não propõe isso por duas razões: a) as pessoas já sabem falar os livro, não precisam ser ensinadas (observe-se que ninguém falao livros, o que não é banal); b) ele acha - e nisso tem razão - que é mais fácil que alguém aprenda os livros se lhe dizem que há duas formas de falar do que se lhe dizem que ele é burro e não sabe nem falar, que fala tudo errado. Há muitos relatos de experiências bem sucedidas porque adotaram uma postura diferente em relação à fala dos alunos. Enfim, cada campo tem seus Bolsonaros. Merecidos ou não. PS 1 - todos os comentaristas (colunistas de jornais, de blogs e de TVs) que eu ouvi leram errado uma página (sim, era só UMA página!) do livro que deu origem à celeuma na semana passada. Minha pergunta é: se eles defendem a língua culta como meio de comunicação, como explicam que leram tão mal um texto escrito em língua culta? É no teste PISA que o Brasil, sempre tem fracassado, não é? Pois é, este foi um teste de leitura. Nosso jornalismo seria reprovado. PS 2 - Alexandre Garcia começou um comentário irado sobre o livro em questão assim, no Bom Dia, Brasil de terça-feira: "quando eu TAVA na escola...". Uma carta de leitor que criticava a forma "os livro" dizia "ensinam os alunos DE que se pode falar errado". Uma professora entrevistada que criticou a doutrina do livro disse "a língua é ONDE nos une" e Monforte perguntou "Onde FICA as leis de concordância?". Ou seja: eles abonaram a tese do livro que estavam criticando. Só que, provavelmente, acham que falam certinho! Não se dão conta do que acontece com a língua DELES mesmos!!

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