segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

CONTOS CURTOS

Três contos curtos de Nilto Maciel

Trem-fantasma- O maquinista, logo após o desastre, deu um grito, levou as mãos à cabeça, pôs-se a chorar e recostou-se a um canto da parede, sentando-se. Descuido? Imprudência? A locomotiva partiu da estação primeira já em alta velocidade e, num segundo, alcançou a segunda, a terceira, feito bala, apitando, sem parar em nenhuma estação. Quando o maquinista percebeu o perigo, não havia mais tempo para frear o trem. O precipício abria-se à sua frente, profundo, mortal. O homenzinho fez careta, arregalou os olhos: os vagões resvalaram, despedaçando-se no fundo do abismo. "Ó meu Deus!" Porém, havia um consolo: nenhum passageiro havia subido aos vagonetes. E ajudantes ele nunca teve. Assim, nada de vítimas. Mais sossegado, enxugou as lágrimas e engatinhou até o primeiro pedaço do trem. Pôs-se a juntar um a um os restos do veículo. Olhou para cima, para a grande mesa da sala, onde o desastre teve início. - O menino e o lobo-Da janela de casa, avistou um menino, à beira do lago, o silêncio da noite. Um lobo se abeirou das águas, olhou para o céu e venerou a Lua. Sedento, abaixou a cabeça e bebeu o claro círculo. Súbito o mundo escurejou. Atônito, o animal se contorceu, gemeu, se pôs a expedir clarões e se arrojou às águas. Banhou-se pelo resto da noite, até que o Sol surgiu enorme, límpido, feito um disco d’ouro. No lago o lobo ainda se debatia, como se garras o puxassem para o fundo. Tentava emergir, respirar, e mais se afogava. Voltava à tona, avistava nesgas de luz e suplicava ao Sol socorro. Em vão, porque nuvens de chuva se ajuntavam. Desesperava-se, sem forças já. Iniciava-se a chuva. O lago se revolvia, inflava. Peixes em festa saltavam em todas as direções. As águas se avolumavam mais e mais. O lago avançava sobre as terras e se confundia com riachos, rios, correntezas. O dilúvio, talvez. O mundo escurecia, repleto de águas. O menino, debruçado à janela, observava tudo com apreensão. Quando as águas desceriam para o mar? Quando o Sol voltaria a aquecer a Terra? Quando reveria as árvores, os animais, as pessoas, o chão? Aos poucos, porém, a chuva se abrandava, as nuvens sumiram, as águas baixaram e o lobo reapareceu à beira do lago, a uivar feito um deus. A Lua brilhava de novo. O animal se abeirou do lago, olhou para o alto e venerou o disco dourado. O menino transpôs a janela, correu na direção do lago e espantou o lobo. À beira da água, avistou a Lua a tremeluzir. Sedento, abaixou-se e bebeu feito um lobo. Súbito o mundo se cobriu de trevas. Apavorado, o menino sentiu náuseas. Como se tivesse engolido todo o fel do mundo. Contorceu-se e se pôs a vomitar restos de luas. No alto da colina, o lobo olhava para ele e o lago, como se entendesse de dores e desejos, como se pudesse impedir a tempestade e o desespero. -Caça e caçador-dias e dias seguidos Saul perseguiu com os olhos a pequena Raquel. Seguiu-lhe os passos pelas ruas. Quando se aproximava dela, havia sempre alguém por perto. Dava meia-volta e se metia na próxima rua transversal. No entanto, sabia onde ela morava. E quase todo dia se postava na esquina, olho na casa dela. Aparecia alguém à janela. Ele se zangava e se punha em retirada. Urgia apressar o bote. Talvez já o conhecessem naquela rua. Já reconhecia até o sorveteiro que empurrava um carrinho. Tanta sede, pensou em comprar um picolé. Não, o homem puxaria conversa, olharia para seu rosto. -Como um dia é da caça, outro do caçador, Saul finalmente conseguiu saciar o desejo. Horas depois a polícia saiu no encalço do assassino, a multidão aos gritos, armada de paus e pedras. Saul, contudo, andava longe do local do crime. E assim andou por longos anos. -Como um dia é da caça, outro do caçador, Saul terminou seus dias como animal pequeno nas garras de uma fera. Numa noite de bebedeira discutiu com outro homem, de nome ignorado. Saul não conseguiu se livrar do ataque e o outro desferiu nele diversas facadas. Antes de morrer, se disse arrependido do crime cometido contra a menina e sua alma voou até a presença de Deus. No mesmo instante a alminha de Raquel se aproximou do Supremo. Por que Saul se achava, se a estuprou e matou? Ora, pequena, ele se arrependeu de tudo. Além do mais, eu quis assim. Saul sorriu e caminhou para a menina, que tremeu e quis chorar. O Todo-Poderoso a tranquilizou. Não tivesse medo. Saul não lhe faria mal. “Aqui não há pecado; não há caça nem caçador”. -Nilto Maciel nasceu em Baturité, Ceará, em 1945. Formou-se em Direito pela UFC. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Editor da revista Literatura desde 91. Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais. Organizou, com Glauco Mattoso, Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977). Publicou oito volumes de contos, oito romances, um conjunto de poemas e dois ensaios sobre o conto no Ceará.

Comente!

Nilto Maciel

Bio-Bibliografia:
NILTO MACIEL nasceu em Baturité, Ceará, em 30 de janeiro de 1945. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77 e regressou a Fortaleza em 2002. Edita a revista Literatura desde 91.
Ganhou alguns prêmios literários: “Brasília de Literatura”, 90, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Distrito Federal, com A Última Noite de Helena; “Graciliano Ramos”, 92/93, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Alagoas, com Os Luzeiros do Mundo; “Cruz e Sousa”, 96, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina, com A Rosa Gótica; “Bolsa Brasília de Produção Literária”, 98, categoria conto, com Pescoço de Girafa na Poeira; "Eça de Queiroz", 99, categoria novela, União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, com Vasto Abismo.
Livros publicados: Itinerário, contos, 1.ª ed. 1974, 2.ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Tempos de Mula Preta, contos, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ; A Guerra da Donzela, novela, l.ª ed. 1982, 2.ª ed. 1984, 3.ªed. 1985, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS; Punhalzinho Cravado de Ódio, contos, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará; Estaca Zero, romance, 1987, Edicon, São Paulo, SP; Os Guerreiros de Monte-Mor, romance, 1988, Editora Contexto, São Paulo, SP; O Cabra que Virou Bode, romance, 1.ª ed. 1991, 2.ª ed. 1992, 3.ª ed. 1995, 4.ª ed. 1996, Editora Atual, São Paulo, SP; As Insolentes Patas do Cão, contos, 1991, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Os Varões de Palma, romance, 1994, Editora Códice, Brasília; Navegador, poemas, 1996, Editora Códice, Brasília; Babel, contos, 1997, Editora Códice, Brasília; A Rosa Gótica, romance, 1.ª ed. 1997, Fundação Catarinense de Cultura, Florianópolis, SC (Prêmio Cruz e Sousa, 1996), 2.ª ed. 2002, Thesaurus Editora, Brasília, DF; Vasto Abismo, novelas, 1998, Ed. Códice, Brasília; Pescoço de Girafa na Poeira, contos, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília: A Última Noite de Helena, romance, 2003, Editora Komedi, Campinas, SP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.

Seguidores