Um palco vazio. Entram dois homens, um vestido de preto
e o outro vestido de branco. Eles representam os dois lados do Autor.
Isso a platéia já sabe porque está escrito no programa. Pelo Autor. Ou
por um dos lados do Autor, já que o outro era contra. Na sua opinião,
dar muitas explicações para a platéia subverte o misto de cumplicidade e
hostilidade que deve existir entre palco e público, e nada destrói este
clima mais depressa do que o público descobrir que está entendendo
tudo.
HOMEM DE BRANCO - Preto.
HOMEM DE PRETO - Branco.
BRANCO - Por que não uma mistura dos dois?
PRETO - Vem você com essa sua absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento. Essa tara pelo meio-termo!
BRANCO - Se não fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação
que nos manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos
preservou. Se eu fosse atrás de você...
PRETO - Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos
dito tudo que nos viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com
audácia. Colocado pingos destemidos em todos os "is". Dado nome e
sobrenome a todos os bois!
BRANCO - Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
PRETO - E temos os tiques nervosos para provar.
BRANCO - Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A
verdade que destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao setor de
traumatismo do Pronto Socorro?
PRETO - Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer "Eu disse!".
BRANCO - Ainda bem que não é você que manda em nós.
PRETO - Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não
fazemos. Não dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo,
dizendo e vivendo só em pensamento. Se ao menos eu pudesse sair aos
sábados...
BRANCO - Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
PRETO - Melhor se envergonhar pelo dito e o feito do que pelo não dito e
o adiado. Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua
vida em 17 dias? E, cada vez que um homem pensa em sair dançando um
bolero na rua e se controla, seu fígado aumenta? E cada...
BRANCO - Bobagem. Ainda bem que eu sou o verdadeiro nós.
PRETO - Não, eu sou o verdadeiro você.
BRANCO - Você só é nós em pensamento. Você é a minha abstração.
PRETO - Sou tudo o que em nós é autêntico. Ou seja: você é a minha falsificação.
BRANCO - Mas quem aparece sou eu.
PRETO - Então o que eu estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
BRANCO - Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o
interlocutor providencial. Um artifício cênico, para o Autor não falar
sozinho.
PRETO - Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer...
BRANCO - Branco. E eu...
PRETO - Preto. Por quê?
BRANCO - Para mostrar à platéia que todo homem é a soma, ou a mescla,
das suas contradições. Que no fim o destino comum de todos não é ser
branco nem preto, é ser cinza. E não estou falando em cremação.
PRETO - Mostrar a quem?
BRANCO - À pla... Onde está a platéia?!
PRETO - Foram todos embora.
BRANCO - Porque não entenderam o nosso diálogo?
PRETO - Porque entenderam. Eu não disse?
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