A literatura faz parte do produto geral do trabalho humano, isto é, da
cultura. A cultura de um povo são suas realizações, em diversos
sentidos, como as ciências e as artes. É um conjunto socialmente
herdado, que de certo modo determina a vida dos indivíduos.
Para compreender a literatura (e a arte em geral) do ponto de vista cultural, há de fazer-se certas distinções e algumas observações.
Em primeiro lugar, é necessário distinguir objeto artístico de utensílio.
A arte não se pode identificar com um utensílio. A arte é gratuita, isto é, sua finalidade é quase a própria arte. A arte não deve ter finalidade, porque ela é uma finalidade em si mesma. É pois uma atividade lúdica, isto é, não tem finalidade fora de si mesma. Isto não quer dizer que a arte não sirva pra nada, mas outra coisa: foi a sociedade moderna que estabeleceu que o padrão da realidade de um determinado objeto é sua necessidade, isto é, os objetos são definidos não pelo que são, mas para o que servem. Tudo na vida social é visto com respeito a um determinado fim. Todos os produtos humanos e todas as ações humanas (o trabalho) estão assim definidos.
Entretanto há outros valores além dos que visam a um determinado fim. O visar a um determinado fim significa inserir-se no meio de produção capitalista que objetiva a satisfação de necessidades e lucro. A arte não visa um determinado fim, porque a arte expande-se no espaço da liberdade, e a liberdade é a espera de nada, ou seja, a arte não visa a nada, porque ela é em si sua própria finalidade, não a outra além dela mesma tão importante quanto ela. Isto não quer dizer que a arte não tenha outra finalidade além dela mesma (a arte pode servir, por exemplo, para educar), mas que a sua própria finalidade em si mesma já seria suficiente para justificar sua própria existência. A liberdade é a espera de nada no sentido de que vige no espaço lúdico, isto é, gratuito, que não visa nada além de si mesma.
A atividade lúdica, isto é, o jogo, é gratuito. É uma atividade que não visa a um determinado fim outro que não a própria ação. Assim como a dança não visa a outra coisa senão ao próprio movimento.
É claro que a arte (como o jogo, a dança) tem muitas finalidades práticas: serve para desenvolver o corpo e o espírito, para viver, ganhar dinheiro, ganhar fama, mudar a sociedade, desenvolver a relação entre os homens e muitos outros etcs. Mas, por melhores e mais necessárias que sejam as finalidades que poderíamos enumerar para a arte, nenhuma poderia ser melhor do que ela mesma. Ou seja: tautologicamente a arte visa a arte.
É muito antigo esse fenômeno. Já no período paleolítico, os homens pintavam, antes de saber falar. Pintavam as grutas. E não com a finalidade de enfeitar, já que muitas pinturas ficavam em lugares onde dificilmente alguém poderia ver. Por que pintavam?
A arte pode ser inteiramente gratuita, como um quadro, ou pode ser embutida num utensílio, por exemplo, um saleiro de ouro do Renascimento. Benvenuto Cellini fez um saleiro de ouro para a mesa de Francisco I com as figuras de Netuno e da Terra. Este saleiro de ouro tem pelo menos três aspectos. Em primeiro lugar é uma obra-de-arte, tem as características estéticas e formais de uma obra-de-arte renascentista. Em segundo lugar tem um certo valor material, isto é, a matéria com que foi formado tem um certo valor no mercado, a peso: o ouro. Em terceiro lugar, é um utensílio, isto é, tem um finalidade fora de si mesmo, qual seja, para portar sal á mesa. A arte, portanto, está embutida num utensílio, mas aquilo que é arte no objeto está livre daquilo que tem utilidade nele, e livre também do seu valor em ouro (poderia ter sido feito em madeira, mais barata, ou em ferro). A arte escapa, pois, do utensílio (como escapou da matéria, do metal ouro que, embora caro, não a constitui). E o aspecto artístico do saleiro continuou, desta maneira, gratuito, isto é, sem finalidade fora de si mesmo.
Gratuito, aqui, não significa não-pago. Se Celline recebeu ou não recompensa em dinheiro pelo trabalho artístico não importa, do ponto de vista estético. E mesmo do ponto de vista estético, certas obras-de-arte têm um valor inestimável, porque são irreproduzíveis. E só tem preço aquilo que se pode tornar propriedade de alguém, ou de algum museu. O problema do valor é sempre definido como valor de troca, nunca como valor artístico. Não pertence á estética o valor em dinheiro de uma obra-de-arte, mas sim de ao comércio de obras-de-arte. E saber se um artista ganha muito dinheiro com sua arte não significa que sua arte tem necessariamente grande valor artístico, mas sim que tem grande valor no mercado da arte, que nem sempre corresponde ao valor estático, mas ao valor da aceitação por parte do público. A aceitação esta que pode estar viciada pela propaganda.
A segunda distinção que devemos fazer (a primeira é entre objeto artístico e utensílio) é entre a coisa dada na natureza e o objeto criado pelo homem, ou produto. Uma pedra é um dado na natureza. Um machado de pedra é um produto, objeto feito. A cultura é o elenco dos produtos e outros feitos humanos. A coisa na natureza, pois, distingue-se do objeto do homem. E note-se que um objeto só o é para um determinado sujeito, que pensa e que o faz. A arte é, logo, um produto gratuito. Marca a passagem e o fazer da cultura, essa energia. O homem se define pelo que faz; o trabalho define o homem. O sujeito faz a realidade do objeto. Esse fazer, essa interferência vai ser chamada trabalho. Hegel percebeu que a ação do trabalho é a força motriz que impulsiona a História. È no trabalho que o homem se produz a si mesmo. O trabalho é o núcleo de onde pode ser compreendida a atividade criadora do sujeito, pois no trabalho se sente a resistência do objeto e o poder do sujeito. O trabalho permitiu ao homem conhecer-se a si mesmo, além de dominar a natureza. A compreensão do trabalho é necessária para que nós possamos compreender a literatura, como produto do trabalho humano. Pois a divisão social do trabalho criou as antigas classes sociais: através dessa divisão de classes, o trabalho passou de criador para alienador do homem.
Como o trabalho, a literatura faz uma transformação da História. A História é um processo unitário, um devir, um pôr-se, um produzir-se e reproduzir-se, implicando que o homem toma cada vez mais consciência de si mesmo como ser social.
Podemos fazer uma distinção entre labor, trabalho e ação humanos. O homem labora com o corpo. Trabalha quando produz os objetos com que cria seu mundo. E sua ação se dá entre os homens, assegura a sobrevivência; o trabalho realiza o produto; a ação e o falar faz a História. A literatura participa das três atividades.
A literatura é ação porque interfere indiretamente nas consciências, no sentido de humanizar p próprio homem. A ação de literatura atua indiretamente na consciência do leitor. A literatura é um meio convincente de ação, pois o receptor fica mais tempo diante da mensagem artística do que o receptor das outras artes, como a pintura e a música. Um romance estabeleça um alto grau de intimidade com seu leitor. O leitor demora mais tempo com ele, vive mais tempo com ele. A mensagem tem tempo para explicar-se, consolidar-se. A literatura é um discurso como o pensamento, e assim há um maior intercâmbio de formação de conceitos no texto interno do leitor.
Como elemento de cultura, a arte literária é hoje um reduto de luta que protesta contra a utilização instrumental do homem pela técnica. È um momento do espírito humano, em que o homem se redescobre como ser cultural. A literatura baseia-se na percepção da alma por si mesma e em si mesma, disse Hegel. Representa o espírito para o espírito, representando o interior e a exterioridade que sempre revela a interioridade do humano, A literatura á capaz de representar um objeto em toda a sua íntima profundidade. O espírito se objetiva para si mesmo através da fantasia da imaginação. A imaginação é pois a base geral de todas as formas artísticas, ela é a matéria sobre a qual a arte trabalha. A literatura trabalha para o desenvolvimento da intuição interior, seu objetivo é o reino do espírito humano (espírito é a interiorização da natureza). A missão da literatura, como fato cultural, é evocar a potência do espírito, tudo aquilo que nas paixões e nos sentimentos humanos nos estimula e nos comove. Estes estímulos estão a serviço da transformação da sociedade. È a emoção, a subjetividade, o principal motor de transformação social. Os estímulos artísticos estão a serviço do homem, isto é, o discurso literário, toda grande arte, é ação política.
Para compreender a literatura (e a arte em geral) do ponto de vista cultural, há de fazer-se certas distinções e algumas observações.
Em primeiro lugar, é necessário distinguir objeto artístico de utensílio.
A arte não se pode identificar com um utensílio. A arte é gratuita, isto é, sua finalidade é quase a própria arte. A arte não deve ter finalidade, porque ela é uma finalidade em si mesma. É pois uma atividade lúdica, isto é, não tem finalidade fora de si mesma. Isto não quer dizer que a arte não sirva pra nada, mas outra coisa: foi a sociedade moderna que estabeleceu que o padrão da realidade de um determinado objeto é sua necessidade, isto é, os objetos são definidos não pelo que são, mas para o que servem. Tudo na vida social é visto com respeito a um determinado fim. Todos os produtos humanos e todas as ações humanas (o trabalho) estão assim definidos.
Entretanto há outros valores além dos que visam a um determinado fim. O visar a um determinado fim significa inserir-se no meio de produção capitalista que objetiva a satisfação de necessidades e lucro. A arte não visa um determinado fim, porque a arte expande-se no espaço da liberdade, e a liberdade é a espera de nada, ou seja, a arte não visa a nada, porque ela é em si sua própria finalidade, não a outra além dela mesma tão importante quanto ela. Isto não quer dizer que a arte não tenha outra finalidade além dela mesma (a arte pode servir, por exemplo, para educar), mas que a sua própria finalidade em si mesma já seria suficiente para justificar sua própria existência. A liberdade é a espera de nada no sentido de que vige no espaço lúdico, isto é, gratuito, que não visa nada além de si mesma.
A atividade lúdica, isto é, o jogo, é gratuito. É uma atividade que não visa a um determinado fim outro que não a própria ação. Assim como a dança não visa a outra coisa senão ao próprio movimento.
É claro que a arte (como o jogo, a dança) tem muitas finalidades práticas: serve para desenvolver o corpo e o espírito, para viver, ganhar dinheiro, ganhar fama, mudar a sociedade, desenvolver a relação entre os homens e muitos outros etcs. Mas, por melhores e mais necessárias que sejam as finalidades que poderíamos enumerar para a arte, nenhuma poderia ser melhor do que ela mesma. Ou seja: tautologicamente a arte visa a arte.
É muito antigo esse fenômeno. Já no período paleolítico, os homens pintavam, antes de saber falar. Pintavam as grutas. E não com a finalidade de enfeitar, já que muitas pinturas ficavam em lugares onde dificilmente alguém poderia ver. Por que pintavam?
A arte pode ser inteiramente gratuita, como um quadro, ou pode ser embutida num utensílio, por exemplo, um saleiro de ouro do Renascimento. Benvenuto Cellini fez um saleiro de ouro para a mesa de Francisco I com as figuras de Netuno e da Terra. Este saleiro de ouro tem pelo menos três aspectos. Em primeiro lugar é uma obra-de-arte, tem as características estéticas e formais de uma obra-de-arte renascentista. Em segundo lugar tem um certo valor material, isto é, a matéria com que foi formado tem um certo valor no mercado, a peso: o ouro. Em terceiro lugar, é um utensílio, isto é, tem um finalidade fora de si mesmo, qual seja, para portar sal á mesa. A arte, portanto, está embutida num utensílio, mas aquilo que é arte no objeto está livre daquilo que tem utilidade nele, e livre também do seu valor em ouro (poderia ter sido feito em madeira, mais barata, ou em ferro). A arte escapa, pois, do utensílio (como escapou da matéria, do metal ouro que, embora caro, não a constitui). E o aspecto artístico do saleiro continuou, desta maneira, gratuito, isto é, sem finalidade fora de si mesmo.
Gratuito, aqui, não significa não-pago. Se Celline recebeu ou não recompensa em dinheiro pelo trabalho artístico não importa, do ponto de vista estético. E mesmo do ponto de vista estético, certas obras-de-arte têm um valor inestimável, porque são irreproduzíveis. E só tem preço aquilo que se pode tornar propriedade de alguém, ou de algum museu. O problema do valor é sempre definido como valor de troca, nunca como valor artístico. Não pertence á estética o valor em dinheiro de uma obra-de-arte, mas sim de ao comércio de obras-de-arte. E saber se um artista ganha muito dinheiro com sua arte não significa que sua arte tem necessariamente grande valor artístico, mas sim que tem grande valor no mercado da arte, que nem sempre corresponde ao valor estático, mas ao valor da aceitação por parte do público. A aceitação esta que pode estar viciada pela propaganda.
A segunda distinção que devemos fazer (a primeira é entre objeto artístico e utensílio) é entre a coisa dada na natureza e o objeto criado pelo homem, ou produto. Uma pedra é um dado na natureza. Um machado de pedra é um produto, objeto feito. A cultura é o elenco dos produtos e outros feitos humanos. A coisa na natureza, pois, distingue-se do objeto do homem. E note-se que um objeto só o é para um determinado sujeito, que pensa e que o faz. A arte é, logo, um produto gratuito. Marca a passagem e o fazer da cultura, essa energia. O homem se define pelo que faz; o trabalho define o homem. O sujeito faz a realidade do objeto. Esse fazer, essa interferência vai ser chamada trabalho. Hegel percebeu que a ação do trabalho é a força motriz que impulsiona a História. È no trabalho que o homem se produz a si mesmo. O trabalho é o núcleo de onde pode ser compreendida a atividade criadora do sujeito, pois no trabalho se sente a resistência do objeto e o poder do sujeito. O trabalho permitiu ao homem conhecer-se a si mesmo, além de dominar a natureza. A compreensão do trabalho é necessária para que nós possamos compreender a literatura, como produto do trabalho humano. Pois a divisão social do trabalho criou as antigas classes sociais: através dessa divisão de classes, o trabalho passou de criador para alienador do homem.
Como o trabalho, a literatura faz uma transformação da História. A História é um processo unitário, um devir, um pôr-se, um produzir-se e reproduzir-se, implicando que o homem toma cada vez mais consciência de si mesmo como ser social.
Podemos fazer uma distinção entre labor, trabalho e ação humanos. O homem labora com o corpo. Trabalha quando produz os objetos com que cria seu mundo. E sua ação se dá entre os homens, assegura a sobrevivência; o trabalho realiza o produto; a ação e o falar faz a História. A literatura participa das três atividades.
A literatura é ação porque interfere indiretamente nas consciências, no sentido de humanizar p próprio homem. A ação de literatura atua indiretamente na consciência do leitor. A literatura é um meio convincente de ação, pois o receptor fica mais tempo diante da mensagem artística do que o receptor das outras artes, como a pintura e a música. Um romance estabeleça um alto grau de intimidade com seu leitor. O leitor demora mais tempo com ele, vive mais tempo com ele. A mensagem tem tempo para explicar-se, consolidar-se. A literatura é um discurso como o pensamento, e assim há um maior intercâmbio de formação de conceitos no texto interno do leitor.
Como elemento de cultura, a arte literária é hoje um reduto de luta que protesta contra a utilização instrumental do homem pela técnica. È um momento do espírito humano, em que o homem se redescobre como ser cultural. A literatura baseia-se na percepção da alma por si mesma e em si mesma, disse Hegel. Representa o espírito para o espírito, representando o interior e a exterioridade que sempre revela a interioridade do humano, A literatura á capaz de representar um objeto em toda a sua íntima profundidade. O espírito se objetiva para si mesmo através da fantasia da imaginação. A imaginação é pois a base geral de todas as formas artísticas, ela é a matéria sobre a qual a arte trabalha. A literatura trabalha para o desenvolvimento da intuição interior, seu objetivo é o reino do espírito humano (espírito é a interiorização da natureza). A missão da literatura, como fato cultural, é evocar a potência do espírito, tudo aquilo que nas paixões e nos sentimentos humanos nos estimula e nos comove. Estes estímulos estão a serviço da transformação da sociedade. È a emoção, a subjetividade, o principal motor de transformação social. Os estímulos artísticos estão a serviço do homem, isto é, o discurso literário, toda grande arte, é ação política.
Fonte:
Manual de teoria literária, Editora Vozes, 11ª edição, páginas 7 á 11
do capítulo 1.1(capítulo escrito por Rogel Samuel, Doutor em letras e
professor da UFRJ)
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