terça-feira, 2 de agosto de 2011
Comunicação com os filhos - Rosely Sayão
Um fenômeno bem interessante tem ocorrido nas relações entre pais e filhos. Trata-se da dificuldade que muitos pais experimentam para conversar com os filhos sobre alguns fatos da vida deles -fenômeno que ocorre principalmente a partir da adolescência.
Primeiro, vamos entender como essa comunicação ocorre no início da vida das crianças.
Alguns pais conversam com seus filhos pequenos como se eles já fossem adultos. Isso significa ignorar que eles têm uma visão especial do mundo, que é fantástica e imaginativa. A fala dos adultos, racional e objetiva, é mais um fator a arrancar a infância das crianças.
Assim, muitas crianças pequenas são obrigadas a enfrentar conversas cheias de detalhes do universo adulto que não entendem ou entendem de modo muito peculiar. Só para exemplificar: pais que se separam, cheios de boas intenções, tentam explicar os motivos do rompimento e terminam por expor detalhes do relacionamento que a criança não deveria saber. Um garoto de quatro anos, ao ouvir uma história de fadas, comentou que o pai não morava mais com a mãe porque este havia sido enfeitiçado por uma bruxa e era prisioneiro dela. Esse é o mundo infantil, é assim que a criança tenta entender o que ocorre à sua volta.
Bem, os filhos crescem e, aos poucos, passam a se relacionar com o mundo como adultos. É uma aprendizagem, por isso precisam da orientação dos pais. É aí que a coisa pega, porque muitos pais criam um conflito: deixam que os filhos tenham vida de gente grande, mas se comunicam com eles como se eles fossem crianças.
Vejamos alguns exemplos. Uma mãe soube, pela amiga da filha, que ela havia experimentado maconha e não teve coragem de abordar o assunto com a garota. Outra mãe constatou que o filho trazia da escola objetos que não eram dele e optou por levar o menino, de 13 anos, para um tratamento psicológico porque não conseguiu falar com ele sobre o tema. Um casal viu, num site de relacionamentos, que o filho se referia às mulheres de modo preconceituoso e ofensivo, mas preferiu não dizer nada ao filho.
Nos casos citados, os pais ficaram melindrados para conversar com os filhos. E, em todos eles, os adolescentes já tinham condições de enfrentar um diálogo franco e arcar com as conseqüências de seus atos.
Aliás, todos eles precisavam da orientação dos pais, não é? Os filhos têm o direito de saber o que os pais sabem sobre a vida deles e também o de ouvir a opinião dos pais sobre o que fazem e como vivem. Só tendo uma relação transparente com seus responsáveis eles aprenderão a agir da mesma maneira na própria vida. Afinal, o que se opõe à conversa franca e aberta com o maior interessado, que é quem toma determinada atitude, é a fofoca, não é?
quinta-feira, 14 de julho de 2011
O poder do capacete - NELSON MOTTA
Qualquer pessoa que exerce atividade de risco usa capacete. De metal, de fibra ou de plástico, sempre coloridos, eles protegem pilotos de carros, motos e aeronaves, operários de usinas, minas, fábricas e construções, além de militares, policiais e bombeiros. É um símbolo forte de trabalho, de ação e de perigo, e até mesmo de coragem, porque pressupõe os riscos de quem o usa.
Depois do cocar de penas que os caciques indígenas oferecem aos caciques políticos, e que eles hesitam em colocar na cabeça pela crença de que traz má sorte, é com o capacete de segurança que eles ficam mais engraçados, visitando obras, fábricas e usinas.
Até o fechamento desta edição, não havia registro de nenhum caso de um político que tenha sido salvo de algum dano na cabeça pelo capacete. Aliás, jamais aconteceu qualquer acidente com alguém nessas inaugurações e visitas.
O pessoal que pega no pesado nas obras e corre riscos reais é que precisa usar, mas, quando os caciques os visitam, tudo vira um teatrinho, sem nenhuma atividade que possa provocar riscos ou sustos. Mesmo assim eles não dispensam o capacete, apesar do paletó e da gravata. E ficam todos com aquela cara ... reparem só.
Respeitáveis homens públicos, grandes estadistas, líderes carismáticos, ninguém resiste ao ridículo com aquele penico colorido encarapitado no cocuruto, sempre parecendo não lhes caber direito na cabeça. Talvez o problema não seja o tamanho dos capacetes, que os há para cabecinhas e cabeçorras, mas a falta de prática dos usuários. Mulheres então, coitadas ...
Estas são imagens clássicas dos políticos no poder, lançando, tocando e inaugurando as suas obras. Não há campanha eleitoral sem elas. Não há politica no Brasil sem ele, o capacete.
segunda-feira, 11 de julho de 2011
Até tu, Brutus, meu filho?!? - LULI RADFAHRER
Um automóvel é uma invenção maluca. Cem automóveis são uma novidade com tantos problemas de infraestrutura que tem cara de moda passageira. Dez mil automóveis dão a seus donos uma sensação de estilo e exclusividade. Um por família faz com que o urbanismo se reconfigure. Um por pessoa obriga todos a mudarem seu estilo de vida.
Um celular é ficção científica. Mil celulares parece capricho de gente rica, sem bateria ou sinal confiável. Um aparelho por família impacta o trabalho e a segurança. Um por pessoa muda indústrias e instituições que nunca o levaram a sério. Uma câmara em cada um redefine comércio, serviços, turismo, cidadania e privacidade.
Novas tecnologias impressionam exatamente por serem inéditas. Sua primeira versão costuma ser um trambolho que mal funciona, oferecendo, à custa de muito esforço, uma vantagem marginal com relação aos processos que substitui. Seu aperfeiçoamento é lento e irregular. Quando finalmente amadurecem, se tornam invisíveis. É exatamente nesse ponto que transformam a vida de quem tem contato com elas. Só se pensa na importância da energia elétrica ou do saneamento básico quando deixam de funcionar.
Ninguém levaria a sério alguém que dissesse que um produto inventado daqui a cinco anos seria, daqui a uma década, maior do que toda a internet. No entanto foi isso o que aconteceu com o YouTube. Criado em 2005, em 2010 ele ocupava, sozinho, mais banda do que toda a rede na virada do século.
Uma tecnologia é a manifestação física de ideias. Como toda ideia, pode dar errado por ser popular. É o que acontece com os adolescentes internados por problemas cardíacos derivados do excesso do consumo de energéticos. Ideias bem-intencionadas também podem falhar porque tornam possíveis novos problemas que jamais existiriam se elas não surgissem. Computadores e smartphones velozes e conectados permitem o trabalho ininterrupto e forçam seus usuários a jornadas de intensidade e duração nunca imaginadas. Em zonas de guerra, estilhaços de mísseis interceptados caindo aleatoriamente podem provocar mais danos do que os próprios mísseis.
A integração das tecnologias cria sistemas complexos e interdependentes. Por mais que sejam planejados para evitar danos, quando os improváveis se acumulam, os efeitos podem ser catastróficos. É o que se viu em Fukushima e Tchernobil, mas também é o que se vê em acidentes bem mais próximos, como a queda do voo AF 447.
Não faz sentido se opor à tecnologia. Isso é bobagem de rico. Quem está do outro lado da barreira da exclusão não pensa se deve adotar esta ou aquela máquina, mas simplesmente quando irá fazê-lo. É fundamental, no entanto, compreender a novidade. Ninguém de bom senso quer uma web com menos páginas, mas todos querem ferramentas melhores para selecionar a informação que existe lá. É por fazer esse filtro que Google, Twitter, Facebook e Wikipédia são populares.
Ideias, enfim, nascem para se procriar. Por mais que toda gestação possa camuflar uma gordura, o bebê é inevitável. Durante muito tempo, as técnicas foram como crianças, dependentes e previsíveis. A rede as colocou em sua adolescência. Quem não mudar o diálogo que tem com elas não terá como compreendê-las.
O demolidor - Bruno Vinícius
Crônica do Leitor do Blog
Estão demolindo o mundo! Foi o primeiro pensamento que tive pela manhã. Mas logo percebi que estava equivocado, porque estavam demolindo só metade. O homem que bate forte com a sua marreta não é necessariamente o culpado, provável que a marreta tenha mais culpa que ele. Responsável mesmo por toda essa destruição é o meu vizinho, que teve a ideia de quebrar a própria parede, espero que não seja pra levantar outra. Paredes são como preconceitos, impedem a visão. Mas a questão não é visionária e sim incomoda, pois é incrível como o barulho parece ser aqui dentro da minha casa; não há nada mais invasivo do que barulho de marreta, observação que me fez comprar uma. Agora não baterei mais palmas na casa de amigos, darei marretada no chão - alguém vai me atender.
Sei que parece muito egoísmo da minha parte implicar com a reforma do vizinho, porque talvez um dia eu também queira reformar, se não for a minha casa talvez seja a dele.
Aff...
Percebo que o Homem por trás da Marreta (isso daria um belo filme) tem certa técnica, e quando começa a ficar insuportável o barulho, e a gente, uma pessoa irreconhecível, ele para. A calma nos retorna como se tivesse ido comprar pão.
O fermento da calmaria age ao contrário, ao invés de crescer diminuí. Antônimo de guerra, paz. Mas o homem parece conhecer a panificadora e o efeito da massa, no tempo certo recomeça e no tempo errado para. Não sei se compliquei misturando pão com marreta, uma coisa é certa, meu café seria bem melhor se não tivesse marreta com pão.
O homem bate bem ao lado do quarto dos meus sobrinhos, que por incrível que pareça, dormem como anjinhos. Eles não poderiam dormir de outro jeito. E aí está a lição das crianças. Não se preocupem com as marretadas que a vida dá. Não posso desprezar o controle de Deus em toda essa situação. Porque até a ideia de reforma ele permitiu que o vizinho tivesse. Condições pra comprar a marreta e saúde para o demolidor. Pra mim a lição deve mesmo ser de paciência. E eu nunca quis aprender nada com tanta rapidez!
segunda-feira, 13 de junho de 2011
O prazer de matar mosquitos - MARCELO COELHO
UMA AMIGA que mora no Rio conta que a nova mania de consumo na cidade é uma raquete elétrica, utilizada para exterminar mosquitos. Na internet, pode ser comprada a preço baixo.
Depoimentos de consumidores não apenas comprovam a sua eficácia como também atestam o prazer que pode existir na eletrocução de pernilongos. O inseto é "fulminado" de um modo que nenhuma propaganda de aerossol poderia prometer em sã consciência.
E, se deixarmos a raquete em contato com o inimigo, ele "explode", emitindo um pequeno ruído capaz de satisfazer nossos instintos mais secretos de vingança.
Fico pensando se essa explosão não se deve à circunstância de o pernilongo estar já empanturrado do sangue de seu assassino. Seja como for, uma coisa é certa.
Alguém está ganhando dinheiro com o inusitado invento. É o que costuma acontecer nas crises.
Quem não se lembra daquelas lâmpadas econômicas que floresceram durante o apagão? Entrei feliz em casa, certo dia, com uma grande sacola de supermercado abarrotada do produto. Sentia-me colaborando com o esforço cívico imposto pelas autoridades e orgulhoso, além disso, de ser um consumidor inteligente.
Minha sensação de inteligência durou menos que o clique de um interruptor, porque eu não tinha reparado, na gôndola de ofertas, que todas aquelas lâmpadas eram para 220 volts.
Tivesse eu uma raquete elétrica naquele tempo, teria sem dúvida destruído, bulbo a bulbo, aquela coleção de inutilidades domésticas. "É eletricidade o que vocês querem?
Então, tomem isto!"
Hoje em dia, poucas daquelas lâmpadas sobrevivem, com sua luz zumbi, numa ou noutra sacada, na frente de alguma loja falida, em alguma sala de espera de hospital, onde, se for no Rio, gente com dengue faz fila, ardendo de febre e impotência.
Talvez por isso mesmo as raquetes elétricas atraiam tanto desejo de consumo. Na impotência, consumir é sempre um consolo.
Ainda mais quando o produto libera impulsos de agressividade. Talvez seja, infelizmente, uma verdade sobre a natureza humana o que observo a seguir.
Por mais que se diga que "prevenir é melhor do que remediar", ninguém tira nenhuma compensação simbólica, subjetiva, do fato de prevenir o que quer que seja. Qual a graça de esvaziar pneus velhos cheios de água, de tirar bacias de plástico do relento? E como dormir sossegado quando não se sabe se o vizinho, para nada dizer das autoridades, tomou alguma iniciativa para eliminar os ovos do mosquito?
De resto, o que é a contracepção, ou mesmo o aborto num início de gravidez, perto da eficácia, da visualidade épica e incontestável de um assassinato?
Na mesma linha de raciocínio, como acusar de homicidas os governantes? Fizeram pouquíssimo para impedir que a dengue vitimasse dezenas de crianças; mas, afinal, é disso mesmo que se trata. Não fizeram nada de mais.
Já a certeza concreta de ver o mosquito morto, longe de qualquer virtualidade preventiva, confere a cada cidadão um poder palpável. Ele faz a sua parte, ou melhor, faz justiça: todo pernilongo, embora possa não ser um Aedes aegypti, tem sua parcela de culpa.
Não é um daqueles jovens que são trucidados em supostos confrontos com a polícia, e que depois se revelam completos inocentes. E uma coisa é possuir um 38 dentro de casa, para corrigir possíveis omissões dos grupos de extermínio, e outra é dar voleios de raquete elétrica no remanso do lar, coisa bem mais divertida.
E sofisticada também. Costumo matar meus mosquitos à mão. Já me aconteceu a felicidade de encontrar um e outro pousado na página do livro que estava lendo: num gesto extremo e terminante de recusa à civilização, fechei o volume com raiva sobre a vítima. O pernilongo ficou para sempre ali, estampado como um asterisco histórico que atestasse, preto no branco, minha rara e microscópica contribuição ao bem-estar da humanidade.
O poder público que se recolha à sua insignificância, e não invente de proibir as raquetes elétricas.
São um símbolo do protagonismo civil e da livre iniciativa. São um adendo e um substituto ao perigoso esporte do frescobol em praias superlotadas. Mate-se o mosquito, o "meu" mosquito (de preferência com explosão), e que o resto do mundo sobreviva, como puder, no seu unânime zumbido de inseto.
terça-feira, 7 de junho de 2011
Tragédias na mídia - ROSELY SAYÃO
Nas últimas semanas, temos sido bombardeados, por todas as mídias, por notícias que revelam violências contra crianças praticadas possivelmente por adultos próximos a elas. É uma criança torturada aqui, outra ali, outra que morre lá e assim por diante. E não podemos esquecer que as crianças, hoje, têm acesso a todos os veículos de comunicação e recebem essas informações.
Que sentidos elas dão a esses fatos? Tomemos dois exemplos que chegaram a mim. Uma criança, de oito anos, perguntou à mãe se o pai poderia matá-la quando ficasse muito bravo. Outra, um pouco mais nova, perguntou se iria ficar de mãos amarradas quando fosse ao castigo. Certamente, muitos leitores devem ter passado por experiências semelhantes com seus filhos e seus alunos.
As crianças estão angustiadas com tais notícias porque identificam nelas que os adultos próximos, ao invés de de protetores, podem ser ameaçadores. Justamente aqueles em quem elas depositam a maior confiança se revelam, nas notícias, suspeitos de agir de modo contrário. E agora?
Agora, mais uma parte da infância de nossas crianças fica comprometida, fato cada vez mais banal. Mas será que não se pode fazer nada? Sim, podemos e devemos fazer algo por elas, que, sozinhas, não conseguem entender e expressar toda a angústia que as invade.
A maioria das escolas costuma ignorar o fato de que seus alunos sabem dessas notícias e continuam seus trabalhos como se nada de excepcional ocorresse. Pois todas elas têm recursos para, de alguma maneira, tratar dessas questões. É um bom momento, por exemplo, para oferecer aos alunos, nas aulas de expressão artística, estratégias para dar forma ao que eles imaginam, sentem e pensam sobre tais fatos.
O simples fato de colocar de modo simbólico sentimentos e angústias já aponta pistas sobre outras formas de trabalhar o tema. Depois, é importante que se fale a respeito, sem psicologismos nem interpretações leigas, para que, coletivamente, eles se sintam acolhidos em suas preocupações e aprendam sobre os direitos das crianças e dos adolescentes e os valores sociais da justiça e da responsabilidade com o bem comum.
Para os pais, esse é um bom momento para oferecer aos filhos mais segurança em relação aos vínculos familiares e dar maior relevância aos valores morais e éticos. É muito importante, por exemplo, afirmar que a família ama e respeita a vida, que nenhuma violência deve ser aceita pelos integrantes do grupo familiar, que casos como os noticiados são exceções -apesar de tanto alarde-, que os impulsos agressivos podem ser controlados e, também, estabelecer um diálogo a respeito das opiniões dos pais e dos filhos sobre esses fatos.
Todas as tragédias servem para nos fazer refletir sobre a humanidade e o nosso cotidiano. Por isso, é importante que os adultos pensem a respeito das pequenas violências, simbólicas ou reais, que o mundo adulto comete contra os mais novos. Afinal: nossas posições demonstram que somos a fim deles ou que estamos mais para ser o fim deles?
sábado, 4 de junho de 2011
Verdades e mentiras do cinema - CARLOS HEITOR CONY
QUANDO A criancinha no colo da mãe disse que o rei estava nu, ninguém pensou em promover um ato público em defesa da roupa inexistente e do rei pelado.
Discretamente, os áulicos da comitiva real devem ter feito uma barreirinha, protegendo a nudez do monarca, que logo voltou ao palácio e se colocou em trajes convencionais.
Pulo do conto do Hans Christian Andersen diretamente para a sessão de cinema aqui no Rio onde um filme de Glauber Rocha estava sendo exibido pela milésima vez.
Uma voz se levantou da platéia, era de Madureira, não o subúrbio, mas o humorista homônimo, que declarou que o filme (não o Glauber) era uma merda.
Estupor entre as cultas gentes! Ranger de dentes!
Como podiam ter deixado um cara daqueles, que não pertencia ao povo eleito, penetrar no sagrado pátio, no templo da arte do Terceiro Mundo que salvará a espécie humana das tiranias e do uso desenfreado da Coca-Cola e dos filmes do Rambo?
Lembro uma sessão no velho Polytheama, onde se exibia um filme de Kubrick, "2001 - Uma Odisséia no Espaço". Silêncio sepulcral na sala, dividida na platéia propriamente dita e no balcão, ambos lotados e perplexos.
Nem mesmo a música de Richard Strauss quebrava o espanto de todos, antes, o acentuava, tornando-o monumental, epifania de um futuro que começaria naquele instante.
Uma voz vinda lá de cima, sarça ardente queimando no Monte Sinai instalado no largo do Machado, desceu como um pássaro de bronze avisando a todos:
- Estou entendendo tudo!
Ninguém se mexeu. Havia um eleito que estava entendendo aquilo tudo. Todos estavam salvos.
Voltando ao filme de Glauber, o desabafo de Madureira produziu o mesmo efeito.
Ninguém discordou, pelo contrário, todos ficaram mais convencidos ainda da grandeza do filme.
Eu próprio, que não estava lá para presenciar momento tão transcendental, folguei que afinal alguém tentasse colocar as coisas no lugar.
Glauber é um gênio, não houve outro entre nós. O diabo é que ele não encontrou um veículo apropriado, caótico como ele, universal como ele, para expressar a sua genialidade.
Teve de usar o material que estava à sua disposição, um material fantástico, sim, mas impotente para movimentar as turbinas submersas que iluminariam o mundo que ele pretendia criar.
Deu tiros em várias direções, partindo sempre do eixo imóvel de suas raízes e de seu tempo -tempo que ele criava com um grão de loucura que não fazia sentido, mas fazia bonito, um bonito redundante, formado por lugares comuns gritados por seus personagens ("O cinema do Terceiro Mundo venceu o capitalismo ocidental na Guerra do Vietnã!") ou brandidos por flâmulas coloridas na ponta de fuzis descarregados -todos os filmes dele têm esse balé de bandeiras, estandartes que rodopiam enquanto uma voz em off, solene e ameaçadora, garante que o homem vencerá o dragão.
Não há humor nem ironia em seus filmes, as mensagens são as mesmas, extensas, com um sentido que só ele entende: o fraco é o forte e o forte é um filho da puta.
Faltou a Glauber ter inventado uma arte que não fosse o cinema, que transcendesse o cinema.
Poesia, romance, teatro, ópera, embolada sertaneja, todas as expressões populares ou eruditas de sua visão de mundo, tudo o que ele tentou na busca de uma linguagem própria, não passou de um genial delírio no qual ele acreditava, como se tivesse a um passo da descoberta definitiva e vital.
Seria o caso de perguntar: o que o cinema representava para Glauber Rocha?
Na minha opinião, o cinema para ele era um duende infantil, que habitava salas escuras, a cada sessão se materializava, depois retornava à dimensão gasosa de uma coisa inexistente.
Dou um exemplo que parece não ter nada com Glauber. Toda a vez que passava em frente ao cinema América, na praça Saens Peña, Adolpho Bloch pisava de mansinho e falava baixo.
Ali ele assistira em criança à "O Corcunda de Notre Dame" diversas vezes, pensava que o corcunda morava ali, se não estivesse trabalhando na tela, tocando o seu sino de bronze, ele estaria ali nos seus domínios de duende, protegido pela escuridão do salão deserto, até que um contra-regra diabólico o despertasse e o obrigasse a ser o monstro iluminado que metia medo nas criancinhas. Uma forma de ver e sentir o cinema como a verdade.
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