“Lama e folhas", de Moreira Campos: obra-prima
Por Nilto Maciel
Iniciou-se Moreira Campos (1914-1994) no mundo literário com o volume Vidas marginais (Fortaleza: Edições Clã, 1949), composto de doze peças ficcionais: Lama e folhas, Náufragos, Vigília, Suor e lágrimas, Esmagados, Varela, Soldado da borracha, Coração alado, Dona Adalgisa, Dúvida, Sugestão do silêncio e Vidas marginais. Entretanto, em 1947, um deles, Coração alado, foi incluído por Graciliano Ramos em Contos e novelas (Norte e Nordeste). É possível que os outros onze também estivessem prontos. Ou bem antes daquele ano.
Segundo o professor, pesquisador e ensaísta Sânzio de Azevedo (“Moreira Campos e a arte do conto, estudo inserido em Obra completa: Contos, São Paulo: Maltese, 1996), o discípulo cearense de Tchekhov e Machado não renegou os contos de seu primeiro livro (...) nem poderia fazê-lo, pois alguns desses contos longos estão definitivamente consagrados, como, entre outros, Lama e folhas’e Coração alado, que figuram em antologias nacionais e até de outros países e, mesmo que não figurassem, seriam as obras-primas que realmente são. Quatro dessas narrativas estão na antologia Contos escolhidos: Lama e folhas, Vigília, Coração alado”e Dona Adalgisa. Provavelmente escolhidos pelo contista. O primeiro deles se incluiu também na Antologia cearense, organizada pela Academia Cearense de Letras, Imprensa Oficial, 1957; em O conto do Norte, 2º volume, seleção de R. Magalhães Júnior, Editora Civilização Brasileira, 1959; e em Terra da luz, organizada pela Secretaria de Educação e Cultura do Ceará, em 1966.
Estudiosos situam a obra de Moreira Campos em duas fases: a das composições mais longas, de enredo perfeitamente delineado, e a posterior, de peças mais curtas, uma mancha, quase sem enredo (Sânzio). Lama e folhas é, pois, da primeira fase. E é ele o objeto deste breve estudo.
Pelas páginas de Lama e folhas transitam diversos personagens, quase todos sem muita importância. Como na maioria das histórias em primeira pessoa, nesta o protagonista se apresenta como narrador, embora não seja o primeiro a ser exibido: A velha minha sogra meteu a cabeça entre a porta (...). E se mostra aos poucos, ainda sem revelar o nome: Sou meio áspero. Só declina o nome José Sampaio - às vésperas do desenlace. A personagem por ele apontada, também sem nome explícito, anuncia a chegada (ao mundo e à história) do terceiro ser fictício: - Um menino! O filho do protagonista. Descreve-o assim o narrador: (...) um ser vermelhinho, de pálpebras ainda intumescidas, punhos cerrados e meio ridículo entre as dobras largas do cueiro. Dormia, ou fingia dormir, o safado!” Numa cena mais adiante, o menino é nomeado: Dudu (apelido) ou Eduardo. No decorrer da trama, o menino também se projeta, à medida que o tempo passa: Meu filho cresce: completou cinco anos. Puxou a mim: é grosso, tem os dedos curtos e o pescoço empinado.
A quarta personagem aparece a seguir (a primeira com nome explícito), como numa sequência de filme: (...) encaminhei-me para o lado de Marta. (...) Repousava exangue, mas sem queixas, pé-de-boi. É mulher como trinta! Trata-se da mãe da criança, obviamente. O quinto ser fictício surge na cena seguinte, noutro lugar, o escritório do narrador. A ação se dá depois do nascimento do menino. Exerce a função de guarda-livros e é assim descrito, de forma caricatural: o velho Ciríaco, ser bicudo e de grande corcunda. Sucedem-se algumas informações em espectro mais amplo: É casado e, na vida, creditou-se ou debitou-se apenas os filhos: bem doze, uns meninos caneludos e remelentos” (descrição debochada). O sexto personagem, o pai de Marta, surge no meio da obra: Família pobre, o velho é corretor. Contudo, tem prurid os burgueses. (...) Meu sogro acha-me penetrante: - Espírito atilado. Este vai longe... O sétimo é o preto Sabino: alma simples e sincera, bom negro!”
No decorrer da narração/narrativa Marta também é relembrada: “Foi por esse tempo que Marta me conheceu. (...) Era então uma menina lânguida, com leitura de romances baratos. Entretanto, quem vai tomando corpo é a figura do protagonista, como é normal: Enfim, sou casado há oito anos, engendrei seguidamente cinco meninas e é este o primeiro macho!. Sendo a composição elaborada também com flashbacks, na terceira página o narrador rememora: Com sacrifício, meu pai mandou-me para um colégio na capital. (...) Frequentei bordéis e tomei mercúrio. Depois, tornei-me menos realista e dei para namoricar nas avenidas e ir aos cinemas, com pretensões a Hollywood. O caráter do herói-vilão vai se pintando em rápidas pinceladas: Como empregado, segui este lema: flexionava a espinha diante dos chefes e era a utoritário com os humildes. É um meio seguro de vencer-se. (...) Aí, com seis meses, dei um desfalque de quarenta mil cruzeiros. Ser abjeto, não se poupa, como se não desse importância às opiniões dos outros. Lembra o pai a falar ao filho em Teoria do medalhão, de Machado de Assis. Diz-se sujeito de imaginação curta. Porém, não há indícios de que a narração seja confissão (oral) a outra pessoa, depoimento escrito ou monólogo interior. Não seria confissão, posto não haver referência a interlocutor, a não ser no desfecho: Deixem-me só. Tragam-me café (...) Mas a exortação é compreensível para o momento (a morte do filho). Também não seria depoimento escrito, pelo próprio final. Desprezível, o personagem também despreza seus semelhantes. As cinco filhas não são sequer nomeadas. Foram engendradas (geradas, produzidas, como se fossem bonecas, objetos). Nas bagunças infantis, em casa, o menino é tratado com carinho; as meninas, com castigos: Não há dúvida: a culpada é a irmã. Castigo-a, aplicando-lhe umas palmadas. Seus empregados são vistos por ele como seres inferiores: A essa gente não se pode dar muita confiança. Sentem-se logo à vontade e no outro dia faltam ao serviço. Os filhos do guarda-livros são caneludos e remelentos. O empregado anda com um pé no tamanco, a boca das calças arregaçadas, por causa de uma ferida na perna. O sogro falava em reputação, cabelos brancos, seu círculo de relações e outras surradas hipocrisias. Não fazia muito caso do velho. Seus desejos em casa nem sempre são atendidos, autoridade frágil. As empregadas domésticas são canalha.
O núcleo básico de Lama e folhas se desenvolve em dois ambientes: nos primeiros momentos, na casa da família de José Sampaio, na cidade (não há nenhuma indicação do nome da cidade); e, na parte final da história, num sítio comprado após o último parto de Marta, num pé de serra, com casa de veraneio ou de férias. Não há descrições da primeira: quarto (Entrei intempestivamente no quarto), com cama (Sentei-me à beira da cama) e berço (debrucei-me sobre o berço), cozinha (Ouço sussurros na cozinha), escada (fico sentado no pé da escada) e jardim (armo a rede num recanto do jardim, que minha casa é ret ira da). E alguma indicação de viver em cidade: Já não leio os jornais, deixei a roda de amigos e limito-me ao rádio à noite. O sítio é descrito assim: Coisa modesta, com algumas fruteiras. Um pequeno córrego rola entre seixos limosos e há uma velha piscina, rústica, com pedras que já se desprendem da argamassa. A descrição do ambiente em volta do sítio é poética: À noite, na planície larga, pisca a luzinha dos lugarejos esparsos. Há lagos onde a lua se reflete pálida. Em volta, o horizonte se amplia, cresce. Uma constatação (crucial no desenrolar das ações) chama a atenção do leitor: a casa é fincada numa elevação abrupta talhada na rocha. Nas cenas secundárias, outros locais são apenas mencionados: o escritório e o bar em frente. Nos episódios passados, o protagonista fala de ruas da cidade, bancos de avenida, porões de pensões, esquinas, calçadas, o ponto do bonde. Supõe-se uma cidade grande (talvez Fortaleza), para a época da história.
Lama e folhas é disposto, no tempo, em alguns episódios, tanto os da trama propriamente dita, como os do passado mais remoto do narrador (flashback). No bloco mais relevante estão o nascimento de Dudu (início da peça), ocorrido na madrugada ou pela manhã; a estada de José Sampaio no escritório de seu estabelecimento comercial, à tarde (Ao fecharmos o escritório), seguida de uma rápida ida a um bar (Na banca de cerveja, entre amigos, disse-lhes que agora era pai); em casa de novo, à noite, provavelmente (abracei minha sogra, derramado e comunicativo. O álcool me tira compostura). Como se estivesse a pensar (monólogo interior), o narrador, estirado na rede (Já me começavam a pesar as pálpebras...) rememora parte de sua juventude: Com sacrifício, meu pai mandou-me para um colégio na capital. No bloco (parágrafo) seguinte, relembra a vida na capital: Trancei pernas nas ruas, espreguicei-me nos bancos de avenida, dormi em porões de pensões, enganando os proprietários e fiz-me revolucionário. E lembra o tempo em que conheceu Marta, o início do namoro, a oposição da velha (a futura sogra) ao namoro da filha com um tipo desclassificado daquele, o casamento, o emprego dele no banco, o desfalque dado por ele. Tudo de forma sucinta.
Na metade da narrativa, volta ao conflito nuclear e dá um salto no tempo: Meu filho cresce: completou cinco anos. Seguem-se pequenos episódios domésticos com os filhos: conta-lhes histórias, faz-lhes compras de brinquedos, presencia suas briguinhas. E anuncia: Comprei um sítio, perto, num pé de serra”. Inicia-se, então, o essencial da obra, como num diário: Chegamos há cinco dias. (...) Manhã. Dou a mão a meu filho e descemos a planície. (...) Hoje estou preocupado, aborreço-me. (...) onde andaria o meu filho?”E chega-se ao clímax.
Para compor a narrativa, Moreira Campos se valeu quase sempre do perfeito, o que é comum aos narradores. Mas também do imperfeito, assim como do presente (sobretudo nas falas, é claro, mas também na narração: o velho é corretor). Em alguns trechos, faz um jogo com os tempos verbais: São assim; apareceram aqui em casa; poderia meter pelo meio, antes eu nunca me preocupara. Uma ou outra vez, se vale do futuro. Alguns verbos (adelgaçar, encrespar, embirrar) mais raros, mesmo em livros de ficção brasileiros mais recentes. No desfecho, como em delírio, o personagem mais uma vez passeia pelos tempos verbais: Acredito que sonhei. A sensação é de pesadelo. (...) Tragam-me café, e eu fumarei mais um cigarro. (...) Já não saberia trilhar os mesmos caminhos.
Sampaio se diz curto de conhecimentos. Estudou pouco, leu pouco. Mas faltam-me recursos, o miolo não produz muito. Chega a zombar dos escritores: O recanto (o sítio) tem sugestões. Seria bom para esses indivíduos que fazem versos ou escrevem romances. Eu, que sou áspero (...). Mesmo assim, é capaz de escrever frases como esta: Envolvo as respostas em retalhos de panteísmo.
O desenlace trágico se anuncia na penúltima página: “Hum!... só agora descubro este detalhe: a casa é fincada numa elevação abrupta talhada na rocha. É preciso estar vigiando esses meninos. Se um deles se despenca aí de cima... Entretanto, o conto se vai aproximando do remate, aos poucos. E vai num crescendo, até desembocar nas palavras finais de Sampaio, e que dão título à história: Águas, lodo... lama e folhas... lama e folhas... Só então o leitor compreende aquele homem tosco, machista, preconceituoso, arrogante, completamente abatido, transformado, pela dor, em ser humano. Digno de piedade.
E é esse desenho detalhado (com o uso do flashback, as descrições, a autoanálise do narrador), visto como enredo tradicional, esse desenho exaustivo do caráter do protagonista que faz de Lama e folhas uma obra-prima: o homem sem caráter, machista, preconceituoso, cheio de defeitos, termina em choro, abatido, vencido pela dor. Completamente em frangalhos.
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Nilto Maciel (Baturité, 1945) é um dos fundadores de O Saco. Publicou as seguintes coleções: Itinerário, 1.ª ed. 1974, 2.ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Tempos de Mula Preta, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ; Punhalzinho Cravado de Ódio, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará.; As Insolentes Patas do Cão, 1991, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Babel, 1997, Editora Códice, Brasília; e Pescoço de Girafa na Poeira, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília. Tem novelas, romances e poemas em livros. Pertenceu ao Grupo Siriará. Editor, desde 1991, em Brasília, da revista Literatura. Em 2003 a transferiu para Fortaleza. Suas narrativas mereceram artigos e ensaios de alguns comentaristas e críticos cearenses, como F. S. Nascimento, Sânzio de Azevedo, Dimas Macedo, Batista de Lima, Francisco Carvalho, Caio Porfírio Carneiro, Carlos Augusto Viana, e também de outros Estados, como Foed Castro Chamma, Tanussi Cardoso, Francisco Miguel de Moura, Ronaldo Cagiano e Astrid Cabral. Tem contos traduzidos para o espanhol, o italiano e o esperanto. Ganhou alguns prêmios também no gênero conto. E-mail: niltomaciel@uol.com.br
Moreira Campos

O Perigrino
Chão rude, áspero, mais de pedregulhos. Um que outro bode ou cabra nas escarpas. O vento e os redemoinhos de folhas secas. Sobre os lajedos, ao meio-dia, modorravam lagartos. Os casebres em distância de léguas. Seres em farrapos, as calças dos homens em tiras dos joelhos para baixo, olho da enxada ao ombro. As mulheres mal podendo apresentar-se: os restos de roupa remendados não cobriam bem as vergonhas. Esse o pudor com que elas se entremostravam, escondidas no umbral da porta para servir a caneca d'água, moringa na mão, olhos em terra. Nesse mundo Belarmino lavrava o roçado onde possível: o veio d'água, o poço barrento, que os músculos rijos aprofundavam no verão maior. Trabalhava o roçado em companhia do filho, até o dia em que a cobra, em mudança de pele, cega, muito veneno nas presas, picou o rapaz perto do buraco do antigo formigueiro sob a oiticica, única mancha permanentemente verde naquele mundo de cinzas.
O garrote de tira de pano no tornozelo, onde o beiço da pele já crescia duro e roxo. A vista empanada, quase sem luz, o delírio no fundo da tipóia:
- Água.
O ferro em brasa, que a própria mulher do filho trou
xe da trempe de tijolos na cozinha. O gemido, contorções do corpo. A pele de fumo voltou a cobrir a ferida. Morreu três horas depois. Longe os vizinhos. Légua e meia o mais próximo. Belarmino teve de ir até lá (o cachorro enrolavase no chão sob a tipóia do morto). Trouxe outros seres em molambos e grunhidos. E a marcha fúnebre - tipóia oscilante presa à estaca de sabiá - se fez em direção ao distante arruado, onde havia a capela e o telheiro abatido do mercado.
No mais, a solidão da noite e dos seres. A viúvamenina, sem lágrimas. Duro mundo, carente de umidades. Muitas lições de renúncia. Tão trabalhados todos como a escarpa fendida e crestada pelo tempo, por onde subiam bodes e cabras.
- Ahn?
- Ô.
Eram as palavras, na noite que se comprimia, se fechava, vinda dos horizontes, da ramaria seca, de onde voavam bacuraus. Da folhagem do imbuzeiro chegava o rasgo da coruja, sem que o mau agouro espantasse mais. Apenas o cachorro erguia as orelhas, consultava o imbuzeiro e latia, insistente.
- Te cala, bicho!
O menino chorava no berço de varas. A viúva-menina
enfadava-se. Erguia-se, limpava com a mão o cisco ligado aos molambos do vestido (a nudez moça e magra contra a chama da trempe na cozinha ou à luz do dia) e servia o mingau de farinha ao filho.
Continuou a levar ao roçado o prato de comida ao sogro, naquele tamanho meio-dia, a colher de latão de través no amarrado do pano. O cachorro a acompanhava, desviando-se pelas veredas: o faro de um que outro preá, mais presente, em pulsações de narinas, no cair da tarde. Belarmino fincava a enxada no barro. Voltava a correr o indicador na testa para livrar-se do suor. Cuspia cuspo grosso. Deslocava-se do canto da boca e punha na pedra a masca de fumo. Sentava-se, benzia-se e iniciava o almoço.
Palavras poucas. Mais os pressentimentos e a compreensão das duras coisas do mundo. Tanto que ela não se assustou quando ele um dia pousou a mão áspera, de muitos calos, um casco, sobre a sua coxa magra. Antes deu-se, sem espanto. Um objeto. Sabia que os olhos dele já lhe varavam o vestido ralo à luz da trempe ou do dia. Entregou-se à sombra do oitizeiro, forrando-se com o próprio pano em que envolvia os pratos.
O cachorro, apoiado nas patas traseiras, orelhas sempre erguidas, foi a única testemunha, sem contar o anum, que teve vôo rasteiro de uma estaca para outra da cerca, ou o lagarto que correu entre folhas secas.
Ela pôs barriga, apareceram as olheiras. A falta de ar já não lhe permitia levar a comida ao roçado. Belarmino valia-se da própria trempe de tijolos sob o mesmo oitizeiro.
A notícia correu de boca em boca, de légua em légua, ouvidos apurados. Uma velha benzeu-se. No nono mês, o próprio Belarmino lhe fez o parto, panela d'água fervente na trempe da cozinha, os molambos molhados. O umbigo do filho ficou crescido pelo corte sem arte. E assim, de grande umbigo, ele começava a engatinhar no chão de barro, o meio irmão já firme nas pernas, o volume da barriga (não perdia o vício de comer barro). Riam os dois, o cachorro entre eles brincando de esconder-se, tudo menino.
Um dia, bateu à porta do casebre o Peregrino. Grande chapéu de palha, o camisolão com o cordão de São Francisco, as alpercatas e o cajado. Nos tornozelos, grudado, o pódas longas estradas. Pregava a Bíblia, os ensinamentos de Deus, em febre de vozeirão e chamas do inferno. As loucuras. A grande barba negra, partida ao meio, tremia. Já trazia notícia daquela mancebia e incesto.
Baixou os olhos diante do vestido ralo da viúva-menina, que já se protegia no umbral da porta. Viu todos: Belarmino, o menino mais crescido, o filho do incesto, que engatinhava e ria sem dentes, o grande umbigo. Pediu pousada, que lhe foi dada na esteira de palha da sala. A noite caiu. Os mesmos seres sem palavras. Mais, em tom de voz e luta com as trevas, as andanças do Peregrino, o mundo de chão que lhe comera as sandálias.
- Este mundo de meu Deus! - dizia, abrangendo o todo num grande gesto.
Não teve recriminações bíblicas. Cessaram ali as chamas do pecado, das condenações eternas. Apagou-se o fogo do inferno. Talvez tivesse tido a intuição de que a palavra de Deus era pequena ou grande demais para compreender a necessidade e a solidão. A mão cabeluda, de unhas sujas, voltou a agradar a cabeça dos meninos. Agradeceu a dormida e o alimento. Apoiou-se ao cajado, e as suas sandálias voltaram a palmilhar os caminhos do mundo.
José Maria MOREIRA CAMPOS (1914-1994)
Um dos maiores contistas brasileiros. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará (1946) e em Letras pela antiga Faculdade Católica de Filosofia do Ceará(1967), foi professor de Língua Portuguesa da UFC . Membro do Grupo Clã, da Academia Cearense de Letras e da Academia Cearense de Língua Portuguesa. Publicou os livros Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terços (1969), Os 12 Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Vêem Coisas (1987), de contos, e Momentos (1976), de poesia. É pai da autora Natércia Campos, de quem trataremos, certamente, mais tarde.
IRMÃ CIBELE E A MENINA
Quando a mãe dos meninos morreu, Dona Madalena, que é espírita e mulher de muito prestígio (à tarde, toma o automóvel do marido, dirigido pelo motorista, e sai em visita aos seus pobres e doentes) recolheu as crianças e as distribuiu como pôde. Falou com Irmã Cola para ficar com a menina, que, por sinal, não é tão menina: tem as pernas bem-feitas e os cabelos bonitos, elogiados pela empregada da casa, ainda na hora em que ela saía:
– São lindos os cabelos dela!
Dona Madalena chegou ao colégio na hora em que as freiras merendavam na mesa grande da área de travejamento forte. Irmã Cola se levantou, outras freiras se levantaram. Dona Madalena recusou a fatia de bolo. Queria apenas a xícara de café com pouco açúcar, que ela indicava com os dois dedos. Os pombos desciam do pombal e vinham arrulhar no parapeito da área. Irmã Cibele, a recente, atirava-lhes miolo de pão, que antes arredondava muito entre os dedos. O pavilhão das órfãs, para onde ia a menina, fica no fundo do longo corredor, que se projeta sob a sucessão de arcadas e tem como piso lajes antigas comidas por muitos passos. O pavimento repousava escuro e tranqüilo, que era domingo: as máquinas de costura fechadas, as cadeiras vazias, as peças de linho arranjadas sobre a mesa. Apenas algumas órfãs se aproximaram interessadas pela novidade da companheira. Examinavam-na. Ela olhava o forro, voltava a descansar na outra perna e insistia em estalar os dedos, para o que Irmã Cola chamou a atenção. A maleta de tábua da menina, comprada no mercado por Dona Madalena, foi mais uma vez colocada a um canto no largo dormitório. Dona Madalena sentiu necessidade de reforçar conselhos. Ela ia ser feliz, e útil. Aprender um ofício. Agora falava mais para Irmã Cola:
– Crochê, que tanto serve para encher a vida da gente.
Irmã Cola ria e confirmava. Pousou a mão sobre os cabelos compridos da menina:
– Ela vai se dar bem.
A menina quis marejar os olhos, e mordeu o lábio.
Quem se empolgou também com os cabelos da menina foi Irmã Cibele, que é recente e atira miolo de pão para os pombos. Alisa-os com as próprias mãos, enquanto a menina se aplica no bastidor, o que é inusitado. As outras órfãs deixam cair os trabalhos no colo mais ou menos surpresas, uma delas de boca aberta, a agulha suspensa no ar. Irmã Cibele teve a idéia do laço de fita, para compor o rabo-de-cavalo, que apreciou recuando:
– Fica lindo!
– Cavilação...
Quem falou assim, de passagem, foi Irmã Teresa. Irmã Cibele pareceu perturbar-se muito. Baixou os olhos: ela tem esse jeito de os escorregar pelo chão. Enfiou as mãos muito alvas e finas nos bolsos largos do hábito, apressou-se, sem muita necessidade, em atender à velha milionária de lorgnon, com automóvel parado sob o castanheiro no portão do orfanato, que viera encomendar enxoval para o casamento da neta. Irmã Cibele explicava:
– São aplicações muito bonitas.
A velha milionária estava mais interessada na toalha de labirinto. Irmã Cibele ainda olhava de lado, disfarçadamente, sentindo os passos de Irmã Teresa, que continuava o seu passeio de inspeção. Irmã Teresa é pesadona, de tornozelos inchados, meias grossas e velhas sandálias, por causa dos joanetes. Toma de manhã o seu remédio para o artritismo, servindo-se do copo de água no filtro, e examina os dedos doloridos e tortos à luz do sol na arcada da área. O que mais lamenta é já não poder dar um ponto de crochê. Não tem tato, energia nos dedos, a agulha cai e ela sente dificuldade em encontrá-la debaixo da cadeira de balanço. Superintende o orfanato. Irmã Cola tem mais a direção do colégio e o cuidado da capela: é muito contrita nos seus votos. Irmã Teresa vigia, superintende:
– Cavilação... muita cavilação.
Embirra com a simpatia de Irmã Cibele pela menina, aquele agarradio tolo, que nem é próprio de uma freira. Ainda assim, Irmã Cibele encontra meio de pegar a menina pela mão e correr com ela até o jardim, que é outra paixão de Irmã Cola: tem verdadeira loucura pelo canteiro de rosas e se contraria com as formigas. Ela própria, Irmã Cola, está ali na manhã de domingo e indica da calçada do pátio as plantinhas que ela quer que as duas mudem:
– Lá... perto da roseira.
As mãos da menina estão sujas de terra. Irmã Cibele tem a barra do hábito umedecida pela grama. Sacode-o na calçada, batendo com os pés. As velhas, que balançam sempre as cabeças e se xingam, continuam a aguação dos outros canteiros com os pesados aguadores. Irmã Cola já se afastou, e Irmã Teresa apareceu sob a arcada, no seu jeito meio míope de cerrar as pálpebras por trás dos óculos, como se contemplasse o telheiro em frente, onde os pombos voltam a arrulhar.
Vigia.
Tudo se deu com a cumplicidade da tarde. O sino da capela já chamara para o terço. As mesmas máquinas de costura fechadas no pavilhão do orfanato, sobras de pano e fios pelo chão, as peças de linho ordenadas sobre a mesa. Irmã Cibele alcançou a menina no corredor do dormitório, depois de ainda consultar pela porta onde há a cortina. Estava muito em cima da menina, e sem palavras, que foram articuladas num sopro.
– Seus seios estão ficando lindos...
A menina propriamente não se surpreendeu. Teve receio, porque também olhou para os lados, para a porta da cortina. Tremia. Irmã Cibele também tremia e ofegava, as narinas acesas. Quis ver-lhe os seios, e ela mesma os procurava, as mãos muito ágeis. Perdia a cabeça. Beijou-os, e agora os sugava, babando-se e repetindo incoerências:
– Ahnn!
A sensação da menina foi de cócegas. Quis encolher-se. A excitação começou a empolgá-la, levantava-a nas pontas dos pés: a língua de Irmã Cibele era ativa e morna, os dentes mordiam com muita delicadeza, quase roíam. Um rumor qualquer? Irmã Cibele recompôs a menina, compôs-se a ela mesma e marchou rápida pelo corredor em direção à capela, os olhos baixos, naquele jeito seu de os escorregar pelo chão.
A menina meteu-se pelo dormitório. Está sentada na beira da cama e rói a unha. Os pensamentos são contraditórios. Sente-se como que esvaziada, lassa. Lembra-se distantemente de Dona Madalena, que viu pela última vez na festa de bodas de prata de Irmã Cola. Interfere a figura de Irmã Teresa. Talvez procure sentar-se junto dela com o bastidor. Nada é certo, há incoerências. Persiste a sensação dos dentes nos mamilos, que ela tenta mais uma vez desfazer com a mão, a blusa ainda úmida pela saliva de Irmã Cibele.
(Moreira Campos, Os Doze Parafusos, in Obra Completa: Contos II, São Paulo, Ed. Maltese, 1996)
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PROFANAÇÃO
A cidade repousava na paz dormente da tarde. Redemoinhos. Carneiros que ruminavam à sombra da igreja. Outros animais pastavam na praça principal, que o mato ia farto naquele fim de águas. De repente, o relincho do jumento cortou o espaço, vibrante, sincopado, sacudindo concentrações. Jumento só relincha em hora certa. À larga sombra do oitão na casa da esquina, Seu Manduca, farmacêutico, concluiu o lance no tabuleiro do gamão e consultou o relógio: vinte para as cinco. Inesperado! Um erro qualquer de cálculo. Novo relincho, houve tropel de cascos. Já o jumento se desembainhara: lança em riste, reluzente, sugestão de um bacamarte boca-de-sino. O beiço superior dobrado, em cheiro de sexo ou de cio, um fauno. A jumenta, nova, um mimo de ancas, talvez ainda intocada, atirou-lhe logo uns dois pares de coices na queixada, de que ele se livrava com dignidade e firmeza. Insistiu em mordê-la no pescoço. Novos coices, toda uma beleza de mocidade. Qualquer coisa, pela própria violência e rápidas entregas e negaças, a lembrar a festa necessária do sexo. A arma poderosa erguia-se lenta contra o peito do próprio jumento, como que se acamando, em pancadas repetidas, mola, alavanca para grandes pesos. Perseguia a fêmea, tentou cavalgá-la, escorregou. D. Esmerina, da janela de casa, a vista curta, apertava as pálpebras, num esforço de verificação. Pressentiu coisas. Mandou que a neta entrasse, menina de doze anos. Sinha Terta parou no meio da praça, equilibrando na cabeça a trouxa de roupa, seduzida, esquecida de tudo. No bilhar de Duca, os homens abandonaram o jogo e, do alto da calçada, bateram palmas:
– Eita, cabra macho!
Mais coices. A jumenta apressava o passo em trote gracioso, e o fauno atrás. Ela entrou por uma das portas laterais da igreja, e ele também, o beiço superior mais dobrado que nunca. Quebraram bancos, o velho confessionário foi deslocado. Alexandre Sacristão, que espanava o altar e os santos, ficou com o espanador parado no ar. Padre Rolim tangia os brutos com a batina (porque esta estória é antiga):
– Xô, demônios!
Tudo se consumou na sacristia, perto da grande mesa coberta com a toalha de gorgorão, onde aos domingos se realizavam as conferências da Sociedade São Vicente de Paulo e se pagava o óbolo.
A beata Inacinha assistira à cena por trás da cortina, perplexa e hipnotizada. Seguira detalhes: a penetração profunda, que lhe dera estremecimentos, a contração da fêmea, os movimentos rápidos. A própria Inacinha sentira um dilaceramento íntimo, como se sangrasse, desejo também de entrega:
– Oh!
Todos siderados: Padre Rolim, Inacinha, Alexandre Sacristão, as outras beatas que chegavam. Padre Rolim se recompôs logo e, afinal, tangeu os dois. Já muitos curiosos no oitão da igreja, um deles vindo do bilhar e ainda esfregando o giz na ponteira do taco. Padre Rolim insistia:
– Absurdo!
Virou-se para Alexandre Sacristão.
– De quem é esse jumento?
Alexandre não sabia. A beata Inacinha conhecia o dono da jumenta:
– É Seu Dedé. Lá da beira do rio.
Padre Rolim, desabotoado, abanava-se com a gola da própria batina:
– O que está faltando é um homem na Prefeitura. Irresponsáveis! Um bando de animais soltos!
Mais curiosos que chegavam. Por fim, foram-se afastando. Alexandre Sacristão veio com o chumaço de estopa e o balde de água para a limpeza do piso da sacristia, onde restava a grande sobra de sêmen e de onde subia um cheiro de sexo, que dilatava as narinas, as de Inacinha ainda mais inflamadas. Padre Rolim decretou que era profanação. Não que fosse preciso interditar a igreja, cerrar portas. Mas pelo menos benzer a sacristia. Apanhou o hissope, aspergiu água benta, disse orações, acompanhado pelas beatas e por Alexandre Sacristão, que terminou por repor no local a grande mesa com toalha de gorgorão, que também fora deslocada. A notícia correu a cidade: Padre Rolim dissera que tinha havido profanação. Benzera a sacristia. Na porta de casa, Seu Apolinário, lido e surdo, levava a mão em concha à orelha cabeluda, com certa ironia.
– Tinha havido o quê?
– Profanação.
– Ah, sim.
A beata Inacinha sentia agora dificuldade de concentrar-se nas orações. A imagem em tanga de São Sebastião no oratório de casa, as chagas, as setas profundas, o sangue, tudo se confundia com a penetração enérgica, dilacerante, quente, morna. Um verdadeiro demônio, como dissera Padre Rolim, até pelo retesado das patas, quase em pé, os cascos, aquele espeto enorme. Inacinha voltava às contas do terço. Na manhã do outro dia, os soldados e os presos de confiança na calçada da cadeia, divertidos, tentavam identificar o jumento, que pastava perto, junto à cerca de arame farpado, de mistura com outros animais. Alguém o apontou. Lá estava ele: moço, inteiro, forte no sopro das narinas. Tosava o mato e erguia a cabeça, altivo, enquanto o rabo tangia varejeiras. Seu Dedé, lá da beira do rio, já viera recolher a jumenta. A cidade voltou à tranqüilidade de sempre: à tarde, os carneiros ruminavam à sombra da igreja.
(Do livro A Grande Mosca no Copo de Leite (1985), reunido a outros em Obra Completa: Contos II, São Paulo, Editora Maltese, 1996)
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José Maria Moreira Campos (Senador Pompeu, 6 de janeiro de 1914 — Fortaleza 6 de maio de 1994) foi um contista brasileiro considerado um dos mais importantes do gênero no país, com obras traduzidas para o alemão, francês, hebraico, italiano e inglês.
[editar] Biografia
Em 1924 a família, após andanças pelo interior do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, por ser o pai construtor de estradas, fixa-se em Lavras da Mangabeira. Em 1930 passando por sérias dificuldades, mudam-se para Fortaleza. Em 30 de outubro, falece em Quixadá o pai do escritor, Francisco José Gonçalves Campos, aos 47 anos. Em abril de 1932, falece Adélia Moreira Campos, mãe do escritor, aos 47 anos. Em 14 de dezembro de 1937, casa-se com Maria José Alcides Campos. Deste casamento, nascem três filhos: Natércia, Marisa e Cid. Em 1943 dá-se a fundação do Grupo Clã. Em 1946 é bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Publica em 1949 Vidas Marginais'. No ano de 1957 sai Portas Fechadas. Em 1958 recebe o Prêmio Artur de Azevedo, do Instituto Nacional do livro. No ano de 1962 ingressa na Academia Cearense de Letras. No ano seguinte, lança As Vozes do Morto. Em 1965 torna-se catedrático de Literatura Portuguesa do curso de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Ceará. Em 1969 é publicado O Puxador de Terço. Nos anos de 1970-1971 é chefe do Departamento de Letras Vernáculas, membro do Conselho Departamental da mesma unidade. Decano do Centro de Humanidades da UFC. Em 1971 publica Contos Escolhidos, nos anos de 1973-1979 é escolhido Pró-reitor de Graduação da UFC. Em 1976 publica Momentos. Ingressa na Academia Cearense da Língua Portuguesa no ano de 1977 e recebe no mesmo ano a Comenda Senador Fernandes Távora da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. No ano de 1978 publica Os 12 Parafusos. No ano de 1981, sai os 10 Contos Escolhidos. Em 1985 lança A Grande mosca no copo de leite. Em 1987, Dizem que os cães vêem coisas. Em dois de dezembro de 1992, recebe o título de professor emérito da Universidade Federal do Ceará. No ano de 1993, no dia cinco de novembro, é agraciado com a Medalha da Abolição, a maior comenda concedida pelo governo do Estado do Ceará e recebe a placa de Honra ao Mérito da prefeitura Municipal de Fortaleza. Falece aos 80 anos. Em agosto, é instituída a Comenda “Moreira Campos” em Senador Pompeu, sua terra natal a ser entregue anualmente a três pessoas de destaque no município. os Encontros Literários do Departamento de Letras da UFC passam a se denominar “Moreira Campos”. É descerrada uma placa com o seu nome na sala dos professores do curso de Letras. Em novembro, é inaugurada a Sala Literária “Moreira Campos” no Palácio da Cultura.[editar] Obras
- 1949 Vidas Marginais, contos;
- 1957 Portas Fechadas, contos;
- 1963 As Vozes do Morto, contos;
- 1969 O Puxador de Terço, contos;
- 1971 Contos Escolhidos, contos;
- 1976 Momentos, contos;
- 1978 Os 12 Parafusos, contos;
- 1981 10 Contos Escolhidos, contos;
- 1985 A Grande mosca no copo de leite, contos;
- 1987 Dizem que os cães vêem coisas, contos
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