Uma Carta
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis,
vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente em A Estação, 15/12/1884.
Celestina acabando de almoçar, voltou
à alcova, e, indo casualmente à cesta de costura, achou uma cartinha de papel
bordado. Não tinha sobrescrito, mas estava aberta. Celestina, depois de hesitar
um pouco, desdobrou-a e leu:
Meu anjo adorado,
Perdoe-me esta audácia, mas não
posso mais resistir ao desejo de lhe abrir o meu coração e dizer que a adoro
com todas as forças da minha alma. Mais de uma vez tenho passado pela rua, sem
que a senhora me dê a esmola de um olhar, e há muito tempo que suspiro por lhe
dizer isto e pedir-lhe que me faça o ente mais feliz do mundo. Se não me ama,
como eu a amo, creia que morrerei de desgosto. Os seus olhos lindos como as
estrelas do céu são para mim as luzes da existência, e os seus lábios,
semelhantes às pétalas da rosa, têm toda a frescura de um jardim de Deus...
Não copio o resto; era longa a
carta, e no mesmo estilo composto de trivialidade e imaginação. Apesar de
longa, Celestina leu-a duas vezes, e, em alguns lugares, três e quatro;
naturalmente eram os que falavam da beleza dela, dos olhos, dos lábios, dos
cabelos, das mãos. Estas pegavam trêmulas na carta, tão comovida ficara a dona,
tão assombrada de um tal achado. Quem poria ali a carta? Provavelmente, a
escrava — a única escrava da casa, peitada pelo autor. E quem seria este?
Celestina não tinha a menor lembrança que pudesse ligar ao autor da carta; mas,
como ele dizia que ela mesma não lhe dera a esmola de um olhar, estava
explicado o caso, e só restava agora reparar bem nos homens da rua.
Celestina foi ao espelho, e lançou
um olhar complacente sobre si. Não era bonita, mas a carta deu-lhe uma alta
idéia de suas graças. Contava então trinta e nove anos, parece mesmo que mais
um; mas este ponto não está averiguado de modo que possa entrar na história.
Era simples opinião da mãe; esta senhora, porém, contando sessenta e quatro
anos, podia confundir as coisas. Em todo o caso, qualquer que fosse o exato
número, a própria dona dos anos não os discutiu, e limitava-se a parecer bem.
Não parecia mal, nem fazia má figura, todas as tardes, à janela.
Esquecia-me dizer que isto
acontecia aqui mesmo, no Rio de Janeiro, entre 1860 e 1862. Celestina era filha
de um antigo comerciante, que morreu pobre, tendo apenas feito para a família
um pequeno pecúlio. Era dele que esta vivia e mais de algumas costuras para
fora.
A idéia de casar entrou na cabeça
de Celestina, desde os treze anos, e ali se conservou até os trinta e sete,
pode ser mesmo que até os trinta e oito; mas ultimamente ela a perdera de todo,
e só se enfeitava para não desafiar o destino. Solteirona e pobre, não contava
que ninguém se enamorasse dela. Era boa e laboriosa, e isto podia compensar o
resto; mas ainda assim não lhe dava esperanças.
Foi neste ponto da vida que
Celestina deu com a carta na cesta de costura. Compreende-se o alvoroço do
pobre coração. Afinal, recebia o prêmio da demora; aí aparecia um namorado, por
seu próprio pé, sem ela dar por ele, e dispunha-se a fazê-la feliz.
Já vimos que ela atribuía à
escrava da casa a intervenção naquele negócio, e o primeiro impulso foi ir ter
com ela; mas recuou. Era difícil tratar diretamente um tal assunto, não estando
nos seus quinze anos estouvados que tudo explicassem; era arriscar a
autoridade. Mas, por outro lado, se se calasse, arriscava o namorado, que, não
tendo resposta, poderia desesperar e ir embora. Celestina vacilou muito no que
faria, até que resolveu consultar a irmã. A irmã, Joaninha, tinha vinte anos, e
era pessoa de muita gravidade; podia dar-lhe um conselho.
— O quê? Não ouço.
— Queria consultar você sobre uma
coisa.
— Que coisa? Você hoje está assim
esquisita, tão alegre, e tão acanhada. Que é que você quer, Titina? Diga. Já
adivinhei.
— O que é?
— É sobre aquele vestido da
baronesa.
Celestina fez um gesto de desgosto,
e ia negar, mas não conseguindo abrir-se com a irmã, preferiu mentir, e foi
buscar o vestido. Na verdade, podia ser mãe dela, viu-a nascer, ajudou-a a
criar. Nunca entre ambas trocaram nenhuma confidência de namoro; e não é que
ambas os não tivessem tido. Mas as relações eram de respeito e discrição.
Não sabendo como sair da
dificuldade, Celestina adotou um plano intermédio; procuraria primeiro
descobrir a pessoa que lhe mandara a carta, e se a merecesse, como era de
supor, à vista da linguagem da carta, abrir-se-ia com a escrava, e depois com a
irmã. Nessa mesma tarde, ela foi mais cedo para a janela, e mais enfeitada,
esteve menos distraída com outras coisas. Não tirou os olhos da rua, abaixo e
acima; não apontava rapaz ao longe, que não o seguisse com curiosidade inquieta
e esperançosa. Joaninha, ao pé dela, notava que a irmã não estava como de
costume; e pode ser mesmo que lhe atribuísse algum princípio de namoro. A mãe é
que não via nada. Sentada na outra janela (era uma casa assobradada), ora
cochilava, ora perguntava às filhas quem era que ia passando.
— Celestina, aquele não é o Dr.
Norberto?
— Joaninha, parece que lá vai a
família do Alvarenga.
Perto das ave-marias, viu
Celestina surdir da esquina um rapaz, que, tão depressa entrara na rua, pôs os
olhos na casa.
Passou pelo lado oposto, lento,
evidentemente abalado, olhando ora para o chão, ora para a janela. Foi até o
fim da rua, atravessou-a, e voltou pelo lado da casa. Já então era um pouco
escuro, não tanto, porém, que encobrisse a gentileza do rapaz, que era
positivamente um rapagão.
Celestina ficou realmente fora de
si. A irmã não viu o que era, mas concluiu que alguém teria passado na rua, que
enchera a alma de Celestina de uma vida desusada. Com efeito, durante a noite,
esteve ela como nunca, alegre, e ao mesmo tempo pensativa, esquecendo-se de si
e dos outros. Quase que não quis tomar chá, e só a muito custo se recolheu para
dormir.
“Titina viu passarinho verde”
pensou Joaninha ao deitar-se.
Celestina, recolhida ao quarto,
meteu-se na cama, e releu a carta do rapaz, lentamente, saboreando as palavras
de amor, e os elogios à beleza dela. Interrompia a leitura, para pensar nele,
vê-lo surdir de uma esquina, ir pela rua fora do lado oposto, e tornar depois
do lado dela. Via-lhe os olhos, o andar, a figura... Depois tornava à carta, e
beijava-a muitas vezes, e numa delas, sentiu a pálpebra molhada. Não se vexou
da lágrima; era das que se confessam. Quando cansou de ler a carta, meteu-a
debaixo do travesseiro, e dispôs-se a dormir.
Mas qual dormir! Fechava os olhos,
mas o sono andava pelas casas dos indiferentes, não queria nada com uma pessoa
em quem as esperanças mortas reviviam com o vigor da adolescência. Celestina
recorria a todos os estratagemas para dormir; mas o rapaz da carta fincava-lhe
os olhos ardentes, e ia de um lado para outro; não tinha mais que contemplá-lo.
Não era ele o namorado, o apaixonado, o noivo próximo? Que ela planeara tudo:
no dia seguinte escreveria uma resposta ao rapaz, e dá-la-ia à escrava, para
que a entregasse. Estava disposta a não perder tempo.
Era meia-noite, quando Celestina
conseguiu adormecer; e antes o fizesse há mais tempo, porque sonhou ainda com o
rapaz, e não perdeu nada.
Sonhou que ele tornara a passar,
recebera a resposta e escrevera de novo. No fim de alguns dias, pediu-lhe
autorização para solicitar a sua mão. Viu-se logo casada. Foi uma festa
brilhante, concorrida, à qual todas as pessoas amigas foram, cerca de dezoito
carros. Nada mais lindo que o vestido dela, de cetim branco, um ramalhete de
flores de laranjeira, ao peito, algumas outras nos apanhados da saia. A
grinalda era lindíssima. Toda a vizinhança nas janelas. Na rua gente, na igreja
muita gente, e ela entrando por meio de alas, ao lado da madrinha... Quem seria
a madrinha? D. Mariana Pinto ou a baronesa? A baronesa... A mãe talvez quisesse
D. Mariana, mas a baronesa... Em sonhos mesmo discutiu isso, interrompendo a
entrada triunfal no templo.
O padrinho do noivo era o próprio
Ministro da Justiça, que ia ao lado dele fardado, condecorado, brilhante, e
que, no fim da cerimônia, veio cumprimentá-la com grande atenção. Celestina
estava cheia de si, a mãe também, a irmã também, e ela prometia a esta um
casamento igual.
— Daqui a três meses, você está
também casada, dizia-lhe ao receber dela os parabéns.
Muitas rosas desfolhadas sobre
ela. Eram caídas da tribuna. O noivo deu-lhe o braço, e ela saiu como se fosse
entrando no céu. Os curiosos eram agora em maior número. Gente e mais gente. Chegam
os carros; lacaios aprumados abrem as portinholas. Lá vai depois o cortejo
devagar e brilhante, todos aqueles cavalos brancos pisando o chão com uma
gravidade fidalga. E ela, ela, tão feliz! ao lado do noivo!
A fada branca dos sonhos continuou
assim a fazer surdir do nada uma porção de coisas belas. Celestina descobriu,
no fim de uma semana de casada, que o marido era príncipe. Celestina princesa!
A prova é que aqui está um palácio, e todas as portas, louça, cadeiras, coches,
tudo tem armas principescas, no escudo, uma águia ou leão, um animal qualquer,
mas soberano.
— Vossa Alteza se quiser...
— Rogo a Vossa Alteza.
— Perdão, Alteza...
E tudo assim, até quase de manhã.
Antes do sol acordou, esteve alguns minutos esperta, mas tornou a dormir para
continuar o sonho, que então já não era de príncipe. O marido era um grande
poeta, viviam ao pé de um lago, ao pôr-do-sol, cisnes nadando, um princípio da
lua, e a felicidade entre eles. Foi esta a última fase do delírio.
Celestina acordou tarde; ergueu-se
ainda com o sabor das coisas imaginadas, e o pensamento no namorado, noivo
próximo. Embebida na imagem dele, foi às suas abluções matinais. A escrava
entrou-lhe na alcova.
— Nhã Titina...
— Que é?
A preta hesitou.
— Fala, fala.
— Nhã Titina achou na sua cesta
uma carta?
— Achei.
— Vosmecê me perdoe, mas a carta
era para nhã Joaninha...
Celestina empalideceu. Quando a
preta a deixou só, Celestina deixou cair uma lágrima — e foi a última que o
amor lhe arrancou.
A carta - Machado de Assis
Fonte: www.google.com.br |
Este
conto fala de uma mulher chamada Celestina. A história começa quando
ela acha uma carta em sua cesta de costura. A carta não tinha
remetente e estava aberta, por isso Celestina lê. Ao descobrir que se
trata de uma cartinha de amor, fica maravilhada! Celestina não faz a
menor ideia de quem tenha lhe enviado a carta. Celestina, que tinha 38
anos, já havia desistido de casar porque não tinha pretendentes. E
quando descobre aquela declaração de amor, volta a sonhar com um
casamento. Celestina vivia com a mãe e uma irmã mais nova. E como de
costume, ficam à varanda vendo o movimento. Pensou em contar à irmã
sobre a carta, mas não conta. Numa dessas vezes que fica na varanda, vê o
vulto de um rapaz e acredita ser ele o pretendente. E passa a fazer
planos para o casamento. De repente, a empregada entra no quarto de
Celestina, preocupada, e pergunta se ela viu uma carta na cesta de
costura. Celestina diz que sim. Então a empregada diz que a carta era
para a irmã de Celestina, e não para ela, destruindo novamente os sonhos
da moça.
Por: Emerson
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