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quinta-feira, 24 de abril de 2014
ENTRE JOVENS - A questão da cidadania, de Leandro Konder
O caminho teórico para a discussão sobre a cidadania está aberto desde os antigos gregos: é preciso combinar o respeito à autonomia das pessoas com a construção de uma comunidade de novo tipo, quer dizer, uma comunidade que não pode ser um formigueiro. Para enfrentar o desafio, nasceu uma atividade à qual a cidade - a polis - deu seu nome: a política.
Do tempo dos gregos para cá, as dificuldades se agravaram muito. A política, em princípio, deveria conciliar os interesses particulares e os ideais comprometidos com a promoção do bem comum. Nas circunstâncias atuais, com o esvaziamento dos ideais, prevalecem amplamente os interesses particulares.
A dimensão comunitária, insuprimível na vida humana, está muito debilitada. Não há quase nenhuma comunidade disponível para que o indivíduo nela se sinta em casa. As comunidades que nos são oferecidas nos parecem suspeitas, não garantem que vão respeitar plenamente a nossa liberdade.
O citoyen da Revolução Francesa cedeu espaço ao bourgeois. As palavras de ordem clássicas - ''Liberdade, igualdade, fraternidade'' - foram trocadas pelos discursos cínicos. Ou, de vez em quando, pela demagogia mais deslavada.
De um lado, ficamos chocados com a hipocrisia de liberais que se pretendem herdeiros do ideário da polis ateniense e usam a tecnologia mais sofisticada para ações imperialistas. De outro, vemos o vácuo deixado pela ausência de genuínas comunidades democráticas ser ocupado por seitas de fanáticos, associações de delinqüentes, capazes dos maiores crimes.
A brutal desigualdade econômico-social que vem se agravando impede que a população reconheça os valores de uma comunidade nacional esgarçada pelos privilégios escandalosos dos de ''cima'' (para usarmos um termo adotado por Gramsci).
Como reverter esse movimento perverso? Não é algo que se possa fazer da noite para o dia. E não se trata de uma campanha exortativa, guiada por uma sucessão infindável de negociações tranqüilas, num clima quase idílico. O encaminhamento das mudanças necessárias passa - é inevitável - por alguns tumultos: contradições materiais às vezes só podem ser resolvidas por atritos materiais.
Não digo isso por gosto, não estou torcendo para que ocorram conflitos; digo-o por uma preocupação minha com a preservação e o fortalecimento da cidadania. Num clima de conflitos já desencadeados (como aquele que, me parece, teremos em breve), precisaremos dedicar uma atenção ainda mais especial que agora às questões da cidadania.
De fato, as questões atuais da cidadania são múltiplas. E são de uma tal complexidade que os antigos gregos nunca poderiam imaginar. O compromisso com a cidadania nos desafia a resgatarmos valores provenientes da tradição democrática e da tradição liberal.
Precisamos lutar permanentemente em defesa dos direitos das pessoas, dos grupos minoritários, das mulheres, das etnias que têm sido historicamente prejudicadas, bem como em defesa da imensa maioria de trabalhadores pobres, que constituem a população brasileira.
Precisamos lutar permanentemente em defesa do direito de todos e de cada um de pensar e expressar seu pensamento, de praticar sua religião, de atuar politicamente de acordo com suas convicções, de se deslocar, mas também de ter assegurada a sua subsistência (sua e da sua família).
Precisamos criar condições nas quais todos possam ter assistência eficiente e gratuita por parte de um sistema de saúde pública de qualidade (como já se faz no hospital Sarah, em Brasília). Precisamos criar condições nas quais todos tenham acesso, paritariamente, a um ensino de qualidade. E tenham acesso a fontes diversas de informações.
Cumpre lutarmos para que os direitos da cidadania abranjam uma participação ampliada das camadas populares (os de ''baixo'', diria Gramsci) na vida cultural nacional.
Tudo indica que é por esse - difícil - caminho que as pessoas, exercendo efetivamente os seus direitos, sentir-se-ão integradas a uma comunidade democrática, recuperarão os valores éticos, superarão a onda de descrença e chegarão à plena cidadania.
030719 - por Leandro Konder para o JB de 19/07/2003
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