quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Crônica - Já não se fazem pais como antigamente


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A grande caixa foi descarregada do caminhão com cuidado. De um lado estava escrito assim: "Frágil". Do outro lado estava escrito: "Este lado para cima". Parecia embalagem de geladeira, e o garoto pensou que fosse mesmo uma geladeira. Foi colocada na sala, onde permaneceu o dia inteiro.
À noitinha a mãe chegou, viu a caixa, mostrou-se satisfeita, dando a impressão de que já esperava a entrega do volume.
O menino quis saber o que era, se podia abrir. A mãe pediu paciência. No dia seguinte viriam os técnicos para instalar o aparelho. - O equipamento, corrigiu ela, meio sem graça.
Era um equipamento. Não fosse tão largo e alto, podia-se imaginar um conjunto de som, talvez um sintetizador.
A curiosidade aumentava. À noite o menino sonhou com a caixa fechada.
Os técnicos chegaram cedo, de macacão. Eram dois. Desparafusaram as madeiras, juntaram as peças brilhantes umas às outras, em meia hora instalaram o boneco, que não era maior do que um homem de mediana estatura. O filho espiava pela fresta da porta, tenso.
A mãe o chamou:
- Filhinho, vem ver o papai que a mamãe trouxe.
O filho entrou na sala, acanhado diante do artefato estranho: era um boneco, perfeitamente igual a um homem adulto. Tinha cabelos encaracolados, encanecidos nas têmporas, usava trim, desodorante, fazia a barba com gilete ou aparelho elétrico, sorria, fumava cigarros king-size, bebia uísque, roncava, assobiava, tossia, piscava os olhos - às vezes um de cada vez - assoava o nariz, abotoava o paletó, jogava tênis, dirigia carro, lavava pratos, limpava a casa, tirava o pó dos móveis, fazia estrogonofe, acendia a churrasqueira, lavava o quintal, estendia roupa, passava a ferro, engomava camisas, e dentro do peito tinha um disco que repetia: "Já fez a lição?". "Como vai, meu bem? Ah, estou tão cansado!". "Puxa, hoje tive um trabalhão dos diabos!". "Acho que vou ficar até mais tarde no escritório". "Você precisava ver o bode que deu hoje lá na firma!". "Serviço de dona-de-casa nunca é reconhecido!". "Meu bem, hoje não!...".
O menino estava boquiaberto. Fazia tempo que sentia falta do pai, o qual havia dado no pé. Nunca se queixara, porém percebia que a mãe também necessitava de um companheiro. E ali estava agora o boneco, com botões, painéis embutidos, registros, totalmente transistorizado. O menino entendia agora por que a mãe trabalhara o tempo todo, muitas vezes chegando bem tarde. Juntara economias, sabe lá com que sacrifícios, para comprar aquele paizão.
- Ele conta histórias, mãe?
Os técnicos olharam o garoto com indiferença.
- Esse é o modelo ZYR-14, mais indicado para atividades domésticas. Não conta histórias. Mas assiste televisão. E pode ser acoplado a um dispositivo opcional, que permite longas caminhadas a campos de futebol. Sabendo manejá-lo, sem forçar, tem garantia para suportar crianças até seis anos. Porém não conta histórias, e não convém insistir, pode desgastar o circuito do monitor.
O garoto se decepcionou um pouco, sem demonstrar isso à mãe, que parecia encantada.
O equipamento paterno, ligado à tomada elétrica (funcionava também com bateria), já havia colocado os chinelos e, sem dizer uma palavra, foi até à mesa e apanhou o jornal.
A mãe puxou o filho pelo braço:
- Agora vem, filhinho. Vamos lá para dentro, deixa teu pai descansar.

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